terça-feira, 2 de julho de 2019

Os Vampiros da Nova Inglaterra





Outro dia essa notícia me apareceu Homem no Camboja é preso e exorcizado após rasgar a garganta de cinco animais e sugar o sangue deles até morrerem . Aconteceu no distrito Cambojano de Koh Sotin, e o homem em questão foi levado até um monge (pela polícia!) para que fosse exorcizado. O monge confirmou que ele tinha sido possuído por um espírito faminto.

O caso me fazer lembrar daqueles casos de canibalismo de alguns anos atrás, aqueles que muita gente pensou, mesmo que durante alguns instantes, ser o começo do apocalipse zumbi, até descobrirem que era tudo causado por uma nova droga. Além disso, a notícia me fez lembrar de um outro caso que rolou, mas em outro século, e sem envolver zumbis. Mas envolve um outro tipo de morto-vivo...


Tuberculose


A tuberculose assolava a população da Nova Inglaterra no Século XIX. Em 1800 a doença era uma das, senão a maior causa de mortalidade da população. Uma em cada quatro crianças nascidas morriam de tuberculose antes dos seis anos. A doença geralmente se espalhava por famílias inteiras, especialmente famílias mais pobres, onde todos dormiam juntos, às vezes na mesma cama

Se uma pessoa morria de tuberculose em uma família, era quase certo que lentamente os outros membros da família também iriam começar a apresentar os mesmos sintomas.


Em 1882 descobriram a bactéria que causava a tuberculose, mas no interior e em todos os lugares mais distantes das grande capitais, ainda achavam que era uma “doença hereditária”, ou ainda que era causada por bebida, por pobreza, que era algo que se tratava com cavalgadas e bebendo açúcar mascavo diluído em água.

E as vezes nem chegavam a pensar que era uma doença de fato, pois existia uma outra explicação para esse mal que estava muito mais a mão.

Vampiros


Vampiros atacando membros de uma família durante a noite, movendo de um para o outro, até que todos eles tenham morrido. Afinal, quando não era uma tuberculose galopante que matava rapidamente, a pessoa definhava a longo de muito tempo, chegando a passar anos sofrendo de febres, transpirando constantemente, sofrendo de crises de tosse com sangue, e ficando cada vez mais emaciados e cadavéricos. CLAROS SINAIS DE ATAQUE DE VAMPIROS, obviamente.

Por incrível que pareça, entre a tuberculose que matava rapidamente, e a que levava meses ou anos, as pessoas geralmente acreditavam que morrer de tuberculose do jeito lento, era uma morte melhor, porque a pessoa podia acertar todos os seus assuntos pendentes antes de partir. Não demorou para que alguns artistas, e certas pessoas das classes altas, começassem a criar uma romantização disso, como se estar morrendo de tuberculose te deixasse mais sábio, de alguma forma (bem, não duvido que fosse algo que mudasse sua perspectiva das coisas, pelo menos). E em meio ao simbolismo, decadentismo, o Mal du siècle, Werther-Fieber, Weltschmerz, Spleen e tudo mais, isso pegou um jeito meio... intenso.


Muitos poetas dormindo ao relento, ou com os pés em bacia de água fria durante a noite pra ver se pegavam pneumonia (alternativa a tuberculose), e se palidez já era algo da moda (indicava que não se saia ao sol, ou seja, gente que não precisava trabalhar, ou seja, gente que podia se “dedicar a perseguir seus ideais artísticos e estéticos completamente”), a moda ficou sendo mais puxada pro cadavérico. Para ficarem pálidas e emaciadas, mulheres usavam maquiagens que continham amônia ou arsênico,


Essa propaganda aí nem é exatamente de maquiagem, eram biscoitos com arsênico pra se mordiscar durante o dia e ficar com aparência... bem, de se estar doente por envenenamento (anunciavam com o"perfeitamente seguro").

Para os olhos ficarem sempre quase marejados, usavam colírios com mercúrio, suco de limão, perfume, ou gotas de uma infusão de beladona (que duravam mais, mas podiam causar cegueira). Com o tempo eram necessárias doses maiores de arsênico, porque o sistema invariavelmente tentava se adaptar. E tirando os efeitos colaterais normais, queda de cabelo, vitiligo, etc, ainda havia o fato de que várias dessas substâncias causavam dependência.

Lola Montez, a famosa bailarina exótica, cortesã, e por um tempo amante do Rei Ludwig I, recomendava banhos de arsênico para manter a palidez. Mas já avisava, uma vez que você se acostumasse com os banhos, teria de manter o hábito para sempre pra não morrer rápido.

Enfim, voltando aos casos de tuberculose. Se várias pessoas de uma mesma família morriam em uma mesma época, já ligavam o alerta de vampiro, porque de acordo com as lendas, os vampiros quando retornavam, sempre atacavam primeiro os membros da própria família.

O que faziam nesses casos, então, era desenterrar a primeira pessoa da família que havia morrido e fazer todos os procedimentos básicos de exumação pra ver se a pessoa era de fato, um vampiro. E o que se seguia era algo que se repetia em todas as narrativas dos casos de vampiros ainda no Velho Mundo:

Se o corpo fosse recente ele ia estar inchado com gás (o que assumiam ser por ele ter se "alimentado" recentemente).
Se o sangue (que pode voltar ao estado líquido após coagular) jorrasse ao corpo ser perfurado, isso era mais uma prova.
Se o corpo não fosse tão recente, o recuo que acontece com a pele ia dar a aparência dos cabelos e unhas terem crescido (que assumiam era resultado do cadáver não estar realmente morto, e sim existindo como morto-vivo).

Depois de decidirem que a pessoa em questão era um vampiro, o procedimento variava de região pra região. Em Vermont e Connecticut, eles arrancavam o coração do corpo e queimavam, já no Maine e em Massachusetts eles só viravam o corpo ao contrário (para quando ele tentasse sair, ele cavasse para baixo), em Rhode Island eles tiravam todos os órgãos, queimavam, decapitavam e enterravam de novo o corpo sem a cabeça, e como medida de proteção o resto da família geralmente comia o coração queimado do morto tuberculoso, ou bebiam uma infusão feita com as cinzas do corpo.

Essa variação de métodos sempre foi comum. Na Europa o favorito era a estaca ou barra de ferro para prender o corpo no caixão (e a decapitação). Essa é uma gravura francesa de 1864 mostrando a exumação de um vampiro:


Mas também havia outros métodos. Existem vários tipos de vampiros, e várias maneiras de se parar um deles, tudo varia de acordo com a região; podem prender os pés do suposto vampiro com um barbante, ou com espinheiros, colocar uma foice no pescoço do corpo para ele próprio se decapitar quando levantasse, esmagar seus dentes com um um tijolo...

Esses são esqueletos de suspeitos de serem vampiros encontrados na Polônia.


Esses mitos da Europa vieram para América com os imigrantes, e o primeiro caso registrado oficialmente na Nova Inglaterra foi em uma carta de 1784 para o jornal "Connecticut Courant and Weekly Intelligencer" sobre um médico que estava aconselhando famílias a exumar e queimar os corpos de pessoas que tinham morrido de tuberculose.

Incidentes


Há o caso de Rachel Harris, que morreu de tuberculose em 1790, e um ano depois, o marido dela, o Capitão Isaac Burton, se casou com sua meia-irmã, Hulda, que logo começou a apresentar os mesmos sintomas da Rachel. A família então supôs que a culpa era da falecida, e em Fevereiro de 1793, mais de 500 pessoas residentes de Manchester se reuniram ao redor de uma forja para queimar o coração, fígado, e pulmões de seu corpo exumado. Quando a Hulda morreu alguns meses depois, eles se justificaram dizendo que talvez a Rachel não fosse um vampiro, e sim uma bruxa, por isso a solução deles não deu certo.

Também há o caso de Sarah Tillinghast, que teria passado a visitar os seus 13 irmãos pouco após morrer. Em 1799 cinco dos irmãos morreram de tuberculose, e quando mais um adoeceu, eles exumaram todos os filhos falecidos. O corpo de Sarah era o menos decomposto, ou seja, ela era a culpada, então queimaram seu coração na frente da casa, para impedir que ela retornasse.

Também há o caso Nancy Young, de 19 anos. Em 1827 sua irmão fica doente, e ela em seguida, morrendo muito rápido. Pouco depois os vizinhos viram mais gente ficando doente, e resolveram desenterrar a menina. Queimaram seu corpo em uma pira funerária, e a família ficou me volta respirando a fumaça da queima porque achavam que isso ia dar a eles algum tipo de imunidade a ataques vampíricos.

Entretanto, em Agosto a irmã, que havia sido a primeira a adoecer, morreu, em dezembro um dos irmãos, em agosto outro, e outro em maio... assim por diante. Estudos feitos décadas depois revelaram que provavelmente o poço da propriedade deles estava contaminado, e isso havia sido a causa das mortes.

Frederick Ramson era um estudante que que morreu de tuberculose em 1817, no dia dos namorados. O pai dele, para que o filho não voltasse como vampiro, desenterrou o corpo e queimou o coração dele na frente de centenas de pessoas.

Em 1830, em Woodstock, um jovem chamado Corwin morreu de tuberculose, e quando seis meses depois o irmão dele adoeceu com a mesma doença, o povo da cidade falou que era um caso de vampirismo. Isso inclui DOIS MÉDICOS do Vermont Medical College, o Dr. Joseph Gallup, e o Dr. John Powers, que confirmaram que era vampirismo e mandaram exumar o corpo do Corwin, que tinha sido enterrado no Cushing Cemetery

(eu sei, eu sei, caso de vampirismo... "Cushing" Cemetery, não me passou desapercebido)

Eles viram que o coração não tinha se decomposto e estava cheio de sangue, então o queimaram e enterraram o resto em um buraco de 3 metros de largura por 15 de profundidade, cobriram com um bloco de granito de sete toneladas e encheram o buraco de terra.


São muitos casos, em muitas cidades. E até mesmo Henry David Thoreau chegou a mencionar sobre eles.


Em seu diário: "26 de Setembro 1859: O selvagem no homem nunca é totalmente erradicado. Eu acabei de ler sobre uma família em Vermont que ao ter vários filhos perecendo vítimas da 'consumação', queimaram os pulmões e coração do último falecido para impedir que outros morressem"

A consumação é a tuberculose, que por sinal, foi o que matou o Thoreau (mas no caso dele, não atribuíram a vampiros). No trech odo diário ele provavelmente estava falando sobre o caso da família Spaulding, que segue o mesmo padrão das outras.


Houve um caso em Exeter, que começa em 1883.
Repito Mil Oitocentos e Oitenta e Três.

(Sabe o que já existia em 1883? Eletricidade já existia. Também já xistiam lâmpadas e telefones.)

Em Dezembro de 1883, a mãe de uma moça chamada Mercy Brown morre de tuberculose. Sete meses depois, a irmã mais velha, Mary Olive, também morre. Em 1891, Mercy e seu irmão, Edwin, ficam doentes, e são enviados para o Colorado pra ver se melhoram com o clima mais seco. Edwin volta, o clima seco não ajudou e ele está morrendo. A essa altura, a Mercy já havia morrido, porque a tuberculose dela foi do tipo bem intenso e rápido.

Isso já serviu para que os moradores da região ficassem alertas… a família toda morrendo, qualquer um podia ser o próximo. Logo começaram a falar que Mercy havia sido avistada andando pela cidade durante a noite, e obviamente ela era um vampiro.
Convenceram o pai de Mercy a exumar a filha e “fazer o que era necessário”.
Sabe... tudo o que se faz para matar um vampiro.

EM MIL OITOCENTOS E NOVENTA E DOIS!
Sabe o que já existia em 1892?
Cinematógrafos, fonógrafos, turbinas, rodas Gigantes, tratores, lentes de contato, trens elétricos no metrô de Londres, escadas Rolantes, automóveis... já existia até COCA COLA!

Pra que não continuassem a atormentá-lo, o pai da Mercy concordou com a exumação, mas só se um médico, o Dr. Metcalf, estivesse junto. Quando o médico chegou, já tinham começado a desenterrar os corpos. A irmã mais velha e a mãe, que tinham morrido há alguns anos, eram esqueletos, então determinaram que elas não eram vampiros. E então exumaram a Mercy.
Acontece que a Mercy não estava enterrada, ela estava em um cripta acima da terra porque era inverno, e não dava pra cavar na terra congelada, eles iam enterrar ela quando mudasse a estação. Essa era a cripta:

O médico examinou o corpo e falou que os pulmões dela estavam infectados com tuberculose, mas o pessoal da vila não quis nem saber.

- Ela é obviamente um vampiro, tem sangue fresco dentro dela!
- É sangue que voltou a ser líquido, acontece com corpos, é um fato médico...
- O cabelo e as unhas dela cresceram!
- Na verdade isso acontece porque a pele recua e dá a impressão...
-Ela está perfeitamente conservada, é um claro sinal que ela é um dos mortos-vivos que retornou para sugar o sangue de seus familiares!
- Ela morreu no inverno, ainda é inverno, e ela estava dentro de um MAUSOLÉU CONGELADO... quer saber, desisto.

Tiraram o coração dela e queimaram, depois misturaram as cinzas com água e deram para para Edwin, que estava morrendo, beber, e livrar ele da maldição.
E ADIVINHA?
Dois meses depois o Edwin morreu.

Esse pânico de Vampiros na região durou um século inteiro.
Existem cerca de 80 casos confirmados, e mais algumas centenas que não puderam investigar, ou que fizeram na encolha, começando em 1700, e indo até o fim do século XIX.


O Lovecraft, que era da região, conhecia bem a história da Mercy Brown, e chegou a usar elementos dela em The Shunned House (e ele tinha o folclorista Sidney Rider pra ajudar nos detalhes). Isso tudo saía nos jornais da época e era um fenômeno bem conhecido.




E obviamente rolavam umas galhofas desse tipo também:



Coincidentemente, sabem quem estava viajando pelos Estados Unidos nessa mesma época, lá por 1896, em um tour com o Lyceum Theater, e leu um recorte sobre o caso da Mercy Brown?

Ele mesmo:
BRAM STOKER


Dracula é publicado um ano depois, em 1897. Ele já estava pesquisando e trabalhando no livro a seis anos quando passou pelos Estados Unidos, mas com certeza conhecer o caso da Mercy Brown e todo o resto influenciou bastante em certas coisas presentes na versão final do livro.

É levemente perturbador pensar que pouco mais de um século atrás ainda aconteciam casos de pânico coletivo envolvendo vampiros. É ainda mais perturbador pensar que em 2004, na vila romena de Marotinu de Sus, um grupo de pessoas convencidas que o falecido Petre Toma havia se tornado um vampiro e estava visitando sua sobrinha, desenterraram seu cadáver, abriram seu peito, removeram seu coração, e após queimar o corpo, misturaram as cinzas com água para que a família bebesse, e nunca mais fosse importunada pelo parente morto-vivo. Apesar do governo Romeno ter banido a prática, e o grupo de caçadores de vampiros terem sido presos pela polícia de Craiova por "perturbarem a paz dos mortos", desde então, a vila vizinha de Amarastii de Sus, tem cravado uma estaca de ferro fundido no coração ou estômago de alguns dos seus mortos, como medida "preventiva".


Quem dera fossem essas as únicas consequências de perigos imaginários sendo espalhados pela mente de pessoas que acreditam em tudo facilmente...

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Bem, para quem quiser ler mais sobre o assunto, aqui tem um artigo da Smithsonianmag sobre tumulo de suspeitos vampiros (que fala sobre a Mercy Brown) The Great New England Vampire Panic, e aqui sobre alguns casos parecidos ao redor do mundo
Aqui é da Woodstock Historical sobre o caso do Corwin e do Frederick Ransom
Esse do American Journal of Physical Anthropology (via webarchive) sobre os casos da Nova Inglaterra Sobre o caso de Marotinu de Sus e Amarastii de Sus (spoiler: os "caçadores de vampiros" decidiram desenterrar o suspeito depois de passar a noite bebendo)

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