quarta-feira, 6 de junho de 2018

A Maldição da Safira Púrpura de Delhi





 A Safira Púrpura de Delhi.

Sua origem é suspeita, seu valor é contestável, e as consequências de possuí-la são invariavelmente ruins.  

Por conta das histórias que acompanham essa desafortunada joia, ela acabou ganhando um apelido, um nome que muitos consideram perfeitamente adequado.

"A Gema da Tristeza".

Mas o que tornou a Gema da Tristeza um artefato tão perigoso? Qual a sua origem? Que maldição sinistra ou entidade a acompanha tão de perto, ao ponto dela retornar ao dono após ter sido jogada em um rio, apenas para continuar a atormentá-lo?

Bem, vamos descobrir.




Uma Herança Especial



A primeira coisa que tenho de explicar sobre a Gema da Tristeza, a Safira Púrpura de Delhi....  é que a joia não é uma safira de verdade.

Pois é.

 A joia é uma ametista oval roxa, e não é das melhores ou mais valiosas. No local em que ela está exposta hoje em dia podemos ver que sua moldura de prata em formato de serpente já está e escurecida, e as duas gemas em forma de escaravelho que a acompanham, apesar de serem antigas, não são exatamente peças raras.

Mas sua falta de valor material não deixa o artefato menos intrigante.

A joia não era muito conhecida até ir parar no Museu de Historia Natural de Londres. Décadas atrás ela foi recebida pelo então curador do museu, Peter Tandy, como parte das doações especificadas no testamento de um benfeitor da instituição. Quando Tandy recebeu a joia, ela estava dentro de sete caixas e cercada de amuletos de proteção. Junto das caixas havia uma carta de seu último dono, Edward Heron-Allen.

 A carta em questão dizia:


“Para – Quem quer que seja o futuro dono desta Ametista. Essas linhas são endereçadas em luto, antes que ele, ou ela, assuma a responsabilidade de possuí-la.

Esta pedra é três vezes amaldiçoada e manchada com o sangue e a desonra de todos que já foram seus donos. Foi saqueada do tesouro do Templo do Deus Indra em Cawnpore durante a Rebelião Indiana em 1855 e transportada a este país pelo Coronel W. Ferris da Cavalaria de Bengala. Do dia em que ele a possuiu em diante, ele foi infeliz, perdendo tanto sua saúde quanto seu dinheiro. Seu filho, que a possuiu após sua morte, sofreu os mais persistentes infortúnios até que eu aceitei a pedra dele em 1890. Ele havia a presenteado a um amigo anteriormente, mas o amigo suicidou-se logo depois, e a deixou de volta a ele em seu testamento.

Do momento em que ela esteve em minhas mãos, desgraças me atacaram até que eu a cerquei com a serpente de duas cabeças que havia sido um anel de Heydon, o Astrólogo, envolta com placas Zodiacais e neutralizada com o Tau mágico de Heydon e dos dois escaravelhos de ametista do período da Rainha Hatasu, vindoss de Der el-Bahari (Tebas). Permaneceu, assim, quieto, até 1902, entretanto, não apenas eu, mas minha esposa, o Professor Ross, W. H. Rider, e a Senhora Hadden frequentemente viam em minha biblioteca o Yogi Hindu, que assombra a joia, tentando consegui-la de volta. Ele se senta em seus calcanhares em um canto do cômodo, cavando o chão com as mãos, como se a estivesse procurando ali.
  
Em 1902, sob protestos eu cedi a joia a uma amiga, que foi tão logo abatida com todo o tipo de desastre possível. Ao retornar do Egito em 1903, eu descobri que ela havia devolvido a pedra, e após mais um grande infortúnio cair sobre mim, eu a joguei no Regent’s Canal. Três meses depois ela me foi trazida de volta por um negociante de joias da rua Wardour, que há havia comprado de um dos indivíduos que vasculham os canais em busca de objetos de valor. Eu então a dei a uma amiga cantora, que genuinamente desejava a joia. Após isso, assim que ela tentou cantar, sua voz morreu, e ela nunca mais cantou desde então. 

Eu sinto que ela exerce uma influência sinistra sobre minha filha recém-nascida, então decidi fechar a joia em sete caixas, e depositá-la em meu cofre no banco, com instruções para que ela não veja a luz do dia novamente até trinta e três anos após a minha morte. Quem quer seja a abri-la, primeiro deverá ler este aviso, para então fazer o que bem entender com a joia. Meu conselho a ele, ou ela, é que a jogue no oceano. Teria feito isso muito tempo atrás, não fosse eu proibido de cometer tal ação pelo meu Juramento Rosacruz.

 (Assinado) Edward Heron-Allen

 Outubro 1904
  


É uma doação curiosa de se receber, não é mesmo? Está na mesma categoria de ganhar uma pata de macaco mumificada pertencente a um faquir que queria ensinar uma lição sobre destino, ou anel dourado na noite da festa de 111 anos do seu tio, que desapareceu durante o discurso.




Joias Amaldiçoadas



A Safira Purpura de Delhi não é um artefato único (no sentido em que ela não é a unica joia amaldiçoada a existir em um ponto específico da história. Eu tenho quase certeza que não existe uma segunda Safira Purpura de Delhi). Joias e tesouros que trazem infortúnios aos donos são uma ideia que existe a muito tempo. Provavelmente desde que o primeiro humano pensou em fazer algo que fosse bonito com metal e pedras brilhantes.

 Na mitologia grega havia o Colar de Harmonia, feito por Hefesto, e dado de presente a Harmonia, por ocasião de seu casamento a Cadmus. O colar em questão fazia com que a mulher que o usasse permanecesse eternamente jovem e bela, mas também trazia a maldição de trazer desastre a quem quer que o possuísse.

Estranho para um presente de casamento, e nos faz pensar o que será que Hefesto estava pensando com um presente de grego desses... até lembrarmos que Harmonia era filha de Afrodite, esposa de Hefesto, e de... Ares.

 Harmonia e Cadmus eventualmente foram transformados em serpentes, e o colar foi passado para a filha de Harmonia, Semele. Semele era uma das amantes de Zeus, e estava grávida de seu filho, Dionysus.  Um dia, Semele decidiu usar o colar, e nesse mesmo dia, recebeu uma vistia de Hera. A deusa insinuou a ela que seu amante não era realmente Zeus, e sugeriu que ela pedisse que ele se mostrasse a ele em sua forma real. Ela fez isso, Zeus se revelou e sua forma fulgurante, e Semele morreu (Dionysus teve de ser costurado na coxa de Zeus até poder nascer).
Polycines Dando o colar a Eriphyle. Vaso Grego, 440 a.C.

O Colar também foi possuído por Jocasta, esposa do rei Laius, e mãe de Édipo e... bem, acho que todos nós, eu, você, e o Sófocles, sabemos como essa história terminou não é?

Polycines herdou o colar e o deu a Eriphyle, esposa de Anphiaraus, para que ela o convencesse a lutar na guerra contra Tebas. Ao descobrir isso, Alcmaeon, filho de Anphiaraus, matou Eriphyle. Callirhoe, esposa de Alcmeaeon desejou ficar com o colar em seguida, o que causou uma longa trama de traições onde várias famílias morrem, e o colar termina consagrado a Athena no templo de Delfos. Durante a Terceira Guerra Sacra, o tirante fócida Phayllus rouba o colar do templo e o presenteia a sua amante. Pouco depois, seu filho enlouquecesse e incendeia a casa matando a ambos.

Nos mitos nórdicos temos o Andvaranaut, um anel pertencente ao anão Andvari, capaz de produzir ouro. Após perder o Advaranaut para Loki, Andvari o amaldiçoa, para que o anel causasse destruição e infelicidade a quem o possuísse. Loki, então, usa o anel para pagar Hreidmar, rei dos anões, por ter acidentalmente causado a morte de seu filho. Hreidmar é morto por seu outro filho, Fafnir, que desejava o Advaranaut para si, e após se transformar em um dragão por conta de sua avareza, Fafnir é morto pelo herói Sigurd (ou Siegfried), que clama o Advaranaut. Existem diversas versões da saga de desgraças que se segue depois disso, a Nibelungenlied, a Völsunga Saga, e a Edda Poética. Todas são longas, e todas são cheias de intrigas, guerra, e morte. 


Sigurd and Fafnir. Alan Lee, 1984

Em A República, de Platão, temos a lenda do Anel de Giges, que é usado como metáfora para a corrupção. Gigas, um pastor, encontra o anel no dedo de um cadáver, e descobre que ele tem o poder de torná-lo invisível. A tentação de usar o anel se mostra difícil de resistir, e ele passa a usá-lo para conseguir poder; seduzindo a esposa do rei, roubando, traindo, e matando. As desgraças parecem ser apenas destinadas aqueles se viram vítimas do portador do anel, mas uso do artefato acaba se mostrando um vício, e o dono passa a não pensar em nada a não ser a necessidade de manter o anel, e nunca perdê-lo

Hmmm, isso me lembra algo.

Oh, é claro...

No legendarium de Tolkien diversas joias são o estopim, não apenas de discórdia, mas de batalhas, massacres, e acontecimentos que alteram o mundo todo. Das três Silmarils causando assassinatos, fratricídios, juramentos de sangue, guerras e a queda de reinos inteiros, passando pela Pedra Arken em O Hobbit, até os Anéis do Poder em O Senhor dos Anéis. 

Mas também temos joias reais que são acompanhadas de histórias sangrentas.

O Rubi do Princípe Negro, por exemplo que hoje faz parte das Joias da Coroa Inglesa (e nem é um rubi de verdade, é só o nome). Ele começa sua trajetória de infortúnios no século XIV, quando seu dono, o Sultão de Granada é morto por Pedro, o Cruel, Rei de Castilha. Pedro fica com a joia, e logo é atacado por seu meio-irmão, e a batalha só é vencida com ajuda de Edward de Woodstock (o "Príncipe Negro"), que então ganha a joia de presente. Na mesma época em que ganha a joia, Edward contrai uma doença misteriosa que viria a matá-lo. Henrique V usou a joia na batalha de Agincourt, onde quase morreu, e Ricardo III estava com ela quando morreu na Batalha de Bosworth.


O Orlov Negro 1/3 do Olho de Brahma
A lista de mortes dos donos do Diamante Hope, desde que saiu da Índia, é extensa, e inclui suicídios, overdoses, enforcamentos, quedas de precipícios, decapitações, e desmembramento por cães raivosos. O Olho de Brahma, outro famoso diamante vindo de uma estátua Indiana, causou que três de seus donos morressem da mesma maneira, pulando de lugares altos, sem contar outros tipos de morte e infortúnios, até que a maldição fosse quebrada quando o diamante foi dividido em três,




Maldição?


 Mas e a maldição da Safira Púrpura de Delhi? O quanto de sua história é plausível de ter acontecido? O quanto dela pode ser confirmada?
 Podemos começar olhando para a pessoa que deixou a joia para o Museu de História Natural, em todas as suas caixas lacradas e com seus amuletos protetores.

Edward Heron-Allen em 1886 e em 1926
Edward Heron-Allen (1861-1943) foi um polímata britânico, e membro da Royal Society. Cientista, escritor, violinista, quiromante (sério), e especialista em grafologia, Heron-Allen traduziu diversas obras de Omar Khayyam para o inglês, e uma das bibliotecas do Museu de História Natural de Londres, a de micropaleontologia, hoje leva seu nome. 
 Mesmo sendo um respeitado e bem-educado estudioso científico, parece que Edward Heron-Allen realmente acreditava que algum espírito maligno acompanhava a Safira Púrpura de Delhi, tendo mencionado isso em diversas conversas e cartas, algumas delas com Oscar Wilde, que era seu amigo pessoal.

 Mas com ou sem espírito acompanhando, a joia provavelmente já tinha uma história sangrenta.
  
 A rebelião em Cawnpore, que ele menciona na carta que acompanhava a Safira foi parte da Revolta dos Sipaios, um prolongado período de levantes armados na Índia contra a ocupação britânica. O massacre em Cawnpore foi um dos pontos principais do conflito (quem leu “A Casa a Vapor” do Júlio Verne vai reconhecer os acontecimentos).

Mesmo que o conflito tenha levado os Britânicos a rever alguns de seus conceitos e atitudes quanto a tradições e costumes de outros países, enquanto ele acontecia, o exército agia de modo a mandar uma mensagem específica a fim suprimir a rebelião e punir os envolvidos. Não era incomum que templos fossem saqueados durante esses conflitos, e que soldados levassem diversos tesouros com eles ao voltarem para casa.
  
 Como já mencionei, outras joias famosas, e supostamente amaldiçoadas começam suas narrativas sendo roubadas de alguma estátua ou templo da Índia, e continuam essa narrativa com uma série de desgraças e mortes ao decorrer das décadas. 

 A equipe do Museu de História Natural de Londres teoriza que toda a história de maldições, desgraças e espíritos assombrando a joia tenha sido inventada por Heron-Allen, principalmente por que depois de fechar a joia em seu cofre, ele publicou uma história intitulada "The Purple Sapphire", sob o pseudônimo Christopher Blayre. Talvez a Safira Purpura de Delhi não é uma safira de verdade porque ele não queria gastar uma fortuna em uma joia legitima, e por isso adquiriu uma ametista para provar sua narrativa.
 Mesmo assim, vários dos detalhes dados por ele na carta podem ser averiguadas como verdadeiros por depoimentos e registros da época. Além disso, o neto de Heron-Allen, Ivor E. Jones, se recusa a tocar a joia até hoje.

 Em 2004, antigo chefe de micropaleontologia do Museu de História Natural, John Whittaker, tentou levar a joia ao primeiro simpósio anual da Heron-Allen Society, e no caminho ele se viu cercado por uma terrível tempestade que o impediu de continuar.

“o céu escureceu e foi tomado pela tempestade mais terrível que eu já presenciei... consideramos abandonar o carro e fugir, e minha esposa estava gritando ‘Por que você trouxe essa maldita coisa junto?’”

 Isso poderia ser tomado apenas como um incidente isolado, mas quando Whittaker tentou levar a joia ao segundo simpósio no ano seguinte, ele foi acometido por uma gastroenterite viral que o deixou tão debilitado que ele não pode ir ao evento.

 No terceiro ano em que ele tentou levar a joia, o que impediu foi uma hospitalização por um súbito caso de pedras nos rins.
  
 É curioso pensar no efeito que essas "maldições" tem. Até que ponto não é apenas influência da aura formada pela história do objeto?

Vou usar um exemplo rápido.


Uma série de quadros de crianças chorando que foram produzidos em massa durante os anos 50, e se tornaram muito populares por anos.

Em setembro de 1985, o tabloide sensacionalista britânico The Sun mencionou que, segundo o bombeiro de Essex, esses quadros eram frequentemente encontrados intactos nas ruínas de incêndios.
 Em novembro, a crença de que os quadros era amaldiçoados e causavam incêndios já havia se espalhado tanto as pessoas estavam organizando grandes fogueiras coletivas para destruir os quadros.
(...o que, em retrospecto, é meio estupido. Usar fogo pra destruir o quadro supostamente mágico a prova de fogo que causa incêndios)

 O mistério por trás dos quadros incendiários era algo mundano. Eles eram pintados com um verniz que retardava chamas, e como os quadros eram muito comuns, varias casas tinham um exemplar. Nas casas que possuíam um quadro e pegavam fogo, geralmente o que ficava relativamente intacto depois do incêndio, era justamente o quadro. Mas o medo e a superstição transformaram essa característica em uma aura sinistra, e acidentes não-relacionados em uma maldição.

 Não há como confirmarmos que a maldição da Safira de Delhi é real.

 Talvez realmente exista algo de sinistro associado, tanto a ela quanto a outras jóias do tipo, como o Diamante Hope, ou o Olho de Brahma. Uma retribuição sobrenatural, um castigo do além, uma lição de Karma. Ou talvez tudo seja apenas sinistro de uma maneira mais mundana, e a unica maldição delas esteja associada a marca colonialista e o sangue que elas carregam em sua história. Uma longa lição inevitável referente a ganância humana.

 Mas a verdade é que não tenho uma resposta para esse ponto específico.

 A narrativa que envolve a joia, no entanto, é bem real.

 Simplesmente ler a história apresentada por Heron-Allen em sua carta, seja ela real ou inventada, influencia o modo como encaramos a Safira de Delhi. E as vezes o modo como percebemos ou como nos sentimos em relação a algo desse tipo, as vezes é o suficiente para determinar sua realidade.

 A história da maldição da Safira Púrpura de Delhi é o tipo de história que precisa ser passada adiante para continuar existindo (tal qual a maldição propriamente dita, só que com menos desgraças), e... bem, eu acho que fiz a minha parte.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Social Share Icons