terça-feira, 12 de junho de 2018

As Sereias Silenciosas



 Eu nunca gostei muito de “A Pequena Sereia”. Algo no rumo e conclusão da história sempre me incomodaram. É claro que esperar algo que não seja deprimente em um conto do Hans Christian Andersen é o mesmo que encontrar um pacote com as palavras “pombo morto” escritas em sua geladeira, abrir, e esperar encontrar algo diferente.

 A sereia do Andersen sempre me pareceu... errada. Ela não tinha as características que eu esperava de uma sereia, talvez devido a infusão de melancolia e dos valores da época em que a história foi escrita. Ela não era ameaçadora. Na primeira oportunidade que teve, jogou seu punhal encantado no mar, desperdiçando uma oportunidade que as devoradoras de marinheiros das lendas antigas nunca iriam ignorar. O fato é que o que a Pequena Sereia era pode ser definido como é “sucessivamente trágica”. Ela perde coisas, ao invés de toma-las. Ela perde a língua, perde a voz, dança enquanto sente que anda sobre vidro e facas, perde o amor de sua vida, a chance de ganhar sua alma, morre, e por fim se torna espuma.


"I know what you want' said the sea witch",ilustração de Harry Clarke. 1910

 Acho que o que me incomodava mais era que a sereia da história não era misteriosa (exceto pelo fato de se tornar muda e não poder revelar sua identidade ao príncipe parvo que ela salvou). As histórias sobre sereias e similares sempre tinham uma boa quantidade de mistério incluído. Detalhes que não eram especificados. Espaços para a imaginação teorizar possibilidades terríveis. E como boa parte dessas histórias eram relatos folclóricos, passados adiante como ‘verídicos’ (pelo menos de acordo com quem os contava), tudo se tornava ainda mais intrigante.

Qual será que era o fundo de verdade por trás de cada mito? Algum deles deve ter algum, já que existem tantos assim, em tantos lugares, e há tanto tempo.

Ainda no primeiro milênio, havia Atargatis (que Ctesias chamou de Derketo), divindade Assíria com cauda de peixe cuja imagem pode ser encontrada em peças de arte a partir da primeira dinastia Babilônica.


Ilustração de Atargatis em Œdipus Ægyptiacus de Athanasius Kircher 
Nas ilhas Britânicas temos os Merrows, meio gente, meio peixe, cujos homens são horrendos e causam tempestades, o Murdúchann, que atrai os marinheiros para túmulos aquáticos com seu canto, tal qual as Sirenes Homéricas, e a Ceasg, a que vive em rios, e é parte salmão. Na Finlândia temos o Vetehinen, que se apresenta na forma de um velho barbado com cauda de peixe, no Chile, o Pincoy, com seu seu rosto de homem, cabelos dourados e corpo de leão marinho, o Ningyo, do Japão, presságio de desastres e cuja carne concede vida eterna, e o Ipupiara do Brasíl, com seus bigodes sedosos e abraço mortal.


Merrow. Alan Lee 1978

 Relatos são uma coisa que não faltam ao decorrer dos séculos. Plínio, o Velho, em sua Naturalis Historia (basicamente a primeira enciclopédia), ainda no século I, descreve vários avistamentos de sereias na costa da Gália, mencionando seus corpos cobertos de escamas, e que cadáveres delas frequentemente apareciam nas praias, fato que o governador da Gália chegou até a salientar em uma carta ao Imperador Augusto.


Ilustração da sereia em Naturalis Historia. Edição alemã de 1565
(nada a ver com o assunto, mas Plínio, o Velho foi uma figura fascinante. A obra dele cobre desde astronomia, até horticultura, passando por geografia, zoologia, pintura, matemática, mineralogia, farmácia, e muitas outras coisas. E também descreve tribos humanas como os Cynocephali, que tinha cabeça de cachorro, os Hippopodes, que tinham cascos de cavalo, e os Sciapodae, que tinha apenas um pé gigante, os Panotioi que tinham orelhas que cobriam o corpo todo, e os Astomi, que não tinham boca e viviam de cheiros. Ele morreu quando o Monte Vesúvio entrou em erupção, porque ele se recusou a sair de onde estava, a trinta quilômetros de Pompéia, antes de terminar a refeição que estava fazendo)

Nos diários de Cristovão Colombo, temos esta passagem:
“No dia prévio [ 8 de Janeiro de 1493], quando o Almirante foi até o Rio del Oro, ele disse ter avistado claramente três sereias que saíam do mar; mas elas não eram tão belas quanto as pintam, pois suas caras possuíam traços masculinos. O Almirante disse que ele já as havia visto outras vezes, na costa da Guiné, onde se acha tudo o que é curioso”


Colombo avistando "sereias", por Theodore de Bry 1594
O fato dele dizer que elas não eram tão bonitas é provavelmente porque eram peixes-boi, mas o detalhe de ainda insistirem que eram sereias, é porque os marinheiros estavam a meses em alto mar nessa situação:


 "We might see some octopuses (no dames) or a half a dozen clams (no dames) we might even see a mermaid... but mermaids got no gams!"

Em uma crônica publicada em 1575, Pero de Magalhães Gândavo conta da aparição de um Ipupiara em uma praia de São Vicente, em 1564, assassinando o índio Andirá, e aterrorizando sua amante Irecê, que fugiu apavorada, julgado a aparição do monstro um castigo. Em sua fuga, Irecê encontra o capitão Baltasar Ferreira, representante em São Vicente do capitão-mor Pedro Ferras Barreto, de Santos, e ele enfrenta e abate a criatura a golpes de espada. Segundo Gândavo, o Ipupiara tinha “quinze palmos de comprido” e era “semeado de cabelos pelo corpo e no focinho tinha umas sedas mui grandes como bigodes”.


No século XVI, em sua obra Viagem À Terra do Brasil, Jean de Léry relata uma história que ouviu dos índios Tupinambás da Guanabara:
 “...não quero omitir a narração que ouvi de um deles de um episódio de pesca. Disse-me ele que, estando certa vez com outros em uma de suas canoas de pau, por tempo calmo em alto mar, surgiu um grande peixe que segurou a embarcação com as garras procurando virá-la ou meter-se dentro dela. Vendo isso, continuou o selvagem, decepei-lhe a mão com uma foice e a mão caiu dentro do barco e vimos que tinha cinco dedos como a de um homem. E o monstro, excitado pela dor pôs a cabeça fora d'água e a cabeça que era de forma humana, soltou um pequeno gemido (...)”

Estátua do Ipupiara em São Vincente. Infelizmente ela foi incendiada por vândalos alguns anos atrás.

Em 1610, Henry Hudson registrou ter visto uma sereia perto da costa da Groelândia:

 “Um de nosso grupo, ao observar além do barco, viu uma sereia, e ao chamar mais da tripulação para vê-la, mais uma apareceu, e logo estava perto da lateral do navio, observando os homens. Pouco depois uma onda veio e a cobriu. Suas costas e peito eram como os de uma mulher, se corpo tão grande quanto os de um de nós, sua pele muito branca e com cabelos negros e longos que a seguiam. Quando ela submergiu vimos sua cauda, era como a de um boto, e pintada como uma cavalinha.”


"Um mui estranho e verdadeiro relato de um peixe monstruoso" ilustração da narrativa de um avistamento de sereia em 1604

 É claro que esses são relatos escritos. E quanto a algo material? É possível que em tanto tempo, ninguém nunca conseguiu nada físico relacionado a sereias?

No século XVII, a Arca de Tradescant, Gabinete de Curiosidades de John Tradescant, o Velho, hoje parte do Ashmolean Museum, supostamente possuía entre seus itens, a mão de uma sereia.

Ok, essa não é a mão de sereia da Arca de Tradescant, é a mão fossilizada do Monstro da Lagoa Negra.

E no início do século passado, você podia pagar marinheiros do Yemen para tirar fotos com legítimas sereias... que na verdade eram dugongos. Eles eram capturados e secados ao sol, com a cabeça amarrada para que diminuísse conforme iam desidratando.


Dugongos e Peixes-Boi são animais que tem sido associados a lendas de sereias há muito tempo, mesmo antes do engano de Colombo. E em 1959, a pintura de um dugongo de 3.000 anos foi descoberta em uma caverna na Malásia, com a inscrição "dama do mar", e na costa ocidental da África, Mami-Wata, o nome de uma divindade aquática, as vezes representada como uma mulher com cauda de peixe, também é como chamam os Peixes-Boi da região.

Mas existe algo material relacionado a sereias que provavelmente possui uma quantidade satisfatória de mistério em sua narrativa.



 A Sereia de Fiji


 Em Julho de 1842, um Inglês que atendia pelo nome Dr. J. Griffin, mesmo do Liceu Britânico de História Natural chega em Nova Iorque. Nas semanas que antecederam sua chegada, cartas de diversos estados haviam chegado aos jornais com histórias sobre um Dr. Griffin, de Londres, que trazia consigo incríveis criaturas, e que uma delas era nada menos que o corpo de uma sereia capturada nas Ilhas Fiji, no Pacífico Sul. Obviamente jornalistas teriam de averiguar se aquilo era verdade, e ao chegar em seu hotel, o Dr. Griffin se viu cercado por repórteres.

 Como naturalista, Griffin mostrou diversas espécies raras de plantas e animais que trazia consigo, incluindo um orangotango e um ornitorrinco vivo. Tudo muito impressionante, mas a imprensa queria um lampejo de algo mais fantástico, na esperança de confirmar que as cartas recebidas falavam a verdade.

 E logo eles confirmam isso.

No cinema ele parece o Hugh Jackman

Entra em cena o notório showman, empresário do entretenimento, e futuro fundador do Ringling Bros Barnum & Bailey Circus,  Phineas Taylor Barnum.

Além de tudo isso, ele curtia inventar umas lorotas. Isso vai ser importante mais pra frente.

 Publicamente, P.T. Barnum afirmou seu interesse em adquirir a sereia para exibi-la em seu recém-comprado museu, o “Barnum’s Grand Scientific and Musical Theater”.  Infelizmente, Griffin recusou a proposta, também publicamente. Isso acabou causando uma pequena animosidade entre os dois, especialmente quando Griffin, por conta própria, anunciou uma apresentação da sereia em um salão de concertos na Broadway.


 Barnum, que afoitamente havia criado uma grande quantidade de material de publicidade para a exibição da sereia, decidiu então ser magnânimo. Para que o material em questão, xilogravuras de belas sereias, não fosse desperdiçadas, o empresário decide doá-los aos jornais da cidade, para que anunciem a apresentação do Doutor no salão de concertos. No domingo, 17 de Julho de 1842, cada jornal da cidade, acreditando ser o único a ter recebido as gravuras de Barnum, publica anúncios sobre a exibição da famosa “Sereia de Fiji”.

 Além disso, Barnum distribuiu todos os 10.000 panfletos que também havia feito previamente, anunciando a exibição.

Muito caridoso da parte dele...

Multidões se dirigiram ao salão para assistir à apresentação do Dr. Griffin, e ter uma chance de ver o prodígio, os restos mortais de uma sereia real. Em sua palestra, Griffin contou suas experiências como explorador, e detalhou suas peculiares teorias de história natural. Por exemplo, seu principal argumento sobre a existência de sereias, era que todos seres da terra têm os eu equivalente do oceano, o cavalo marinho, o leão marinho, o lobo marinho, (o pepino-do-mar, talvez?). Obviamente, humanos do mar também era uma das opções.

 Os jornais da época continuaram dando atenção a Sereia de Fiji, mesmo depois que o espécime se revelou muito diferente das belas sereias desnudas dos panfletos de Barnum.

♪ I wanna be where the people are. I wanna see, wanna see 'em dancing ♪

 Após uma semana se apresentando no salão de concertos, Griffin entrou em um acordo para que a sereia ficasse mais tempo em Nova Iorque. E ela seria exibida por um mês, sem taxa extra alguma, no museu de P.T. Barnum, cujas vendas de ingresso rapidamente triplicaram.




O que poucas pessoas sabiam na época, é que o Dr. J. Griffin não era quem ele aparentava ser. Muito não era o que aparentava. O “Liceu Britânico de História Natural” nunca existiu. As cartas mandadas aos jornais durante semanas eram falsas, e o desentendimento público entre o naturalista e Barnum havia sido combinado.
 Na verdade, o “Dr. J. Griffin” sequer era uma pessoa real. Ele não era inglês, e seu nome verdadeiro era Levy Lyman, um amigo e comparsa de longa data de Barnum.

Mas e quanto a Sereia de Fiji? Como ela foi parar nas mãos de Barnum?

Para isso precisamos voltar alguns anos, para 1822, e ir para o mar aberto, a bordo do navio mercante Pickering. Durante uma de suas viagens, o capitão do navio, Samuel Barrett Eades resgata um mercador holandês cujo navio havia afundado. O mercador então mostra ao Capitão Eades o estranho espécime que ele afirmava ter pescado em algum lugar na costa do Japão.
 Ao ver a pequena criatura de torso simiesco e posterior pisciano, Eades pensou que aquilo iria torna-lo milionário. O capitão vendeu o Pickering e levantou $6,000 para comprar a sereia do holandês.




 Em Setembro de 1822, Eades retorna a Londres, e em um café da Rua St. James ele monta um domo de vidro onde a sereia pode ser vista de forma permanente (pelo preço de um xelim). O Capitão convida dois proeminentes naturalistas para examinarem a sereia, entre eles e comprovar sua autenticidade, e quando eles a declararam falsa, ele procura outros dois menos conhecidos, que a declaram real. 




Para reforçar a legitimidade da criatura, Eades declara que o grande naturalista, Sir Everard Home, havia confirmado que a sereia era genuína. Home ficou furioso com isso, e arranjou para que diversas publicações respeitadas anunciassem que a sereia não passava de uma fraude, a cabeça e torso de algum macaco costurados no corpo de um peixe.

Isso foi confirmado pelo Sr. William Clift, do Royal College of Surgeons, que examinou a sereia, e declarou que ela havia sido construída com um salmão unido ao torso e crânio de um orangotango, e com a mandíbula de um babuíno.


Analise de William de Clift

Foi o começo do fim para o Capitão Eades. O café fechou por falta de visitas, e o co-proprietário do Piquering o processou por ter vendido o navio e nunca ter pagado sua parte. Eades teve de navegar pelos próximos vinte anos para conseguir pagar de volta seu sócio, e quando ele morreu, a sereia foi a única herança deixada para sua filha.

Vinte anos depois, a filha de Eades vende a sereia ao proprietário do Museu de Boston, Moses Kimball. Kimball era um velho amigo de P.T. Barnum, e havia sido parte da farsa de Judith Heth, onde apresentavam uma mulher como sendo a ex-babá de 160 anos de George Washington (na verdade ela tinha pouco mais de 70). Juntos, Barnum e Kimball engendraram todo um plano para chamar atenção a sereia, antes de colocá-la em exibição no museu. As cartas, o falso Dr. Griffin, o desentendimento público, os folhetos e anúncios. Tudo cuidadosamente planejado.

A Sereia de Fiji passou os próximos vinte anos sendo exibida alternadamente no museu de Barnum, em Nova Iorque, e no de Kimball, em Boston.
 Em 1865 um incêndio destruiu o museu de Barnum. Não se sabe se a Sereia estava lá, ou em Boston na ocasião. De qualquer forma, o museu de Kimbal também pegou fogo, em 1880, tornando o paradeiro da Sereia de Fiji incerto até os dias de hoje.

O que ainda não responde uma pergunta. Qual a origem da estranha criatura?

Para isso temos de voltar mais ainda no tempo, e ir para outro hemisfério.



O Ningyo




Essa múmia com cauda de peixe e garras está exposta em um templo Xintoísta na cidade de Fujinomiya, perto da base do Monte Fuji, e supostamente tem mais de 1.400 anos.
 Segunda a lenda, essa criatura apareceu ao príncipe Shotoku (Shotoku Taishi) quando ele estava caminhando as margens do lago Biwa. A criatura agonizante disse ao príncipe que havia sido transformada naquilo como punição por ter pescado indiscriminadamente onde não devia, em um santuário animal. Ela disse que após muitos anos assim, havia aprendido sobre os horrores de destruir vidas, e estava preparada para mover para o próximo mundo. Antes de morrer, como último pedido, o ser pediu ao príncipe que construísse um templo para manter seu corpo, onde ele seria usado para ensinar as pessoas sobre a santidade da vida. O príncipe fez isso, mas após diversas ocorrências estranhas, o corpo da criatura foi transferido para outro templo, e mudou de local diversas vezes até chegar no local onde se encontra até hoje.




Existe um outro templo, o Kannon Shoji, em Shiga, que afirma ser o templo original da lenda, e que o corpo da criatura ainda está lá (mas não existem fotos).

O ser dessa lenda era um Ningyo.

O ningyo, cujo nome literalmente pode ser traduzido como “pessoa (nin) peixe (gyo)", é um yokai, um demônio-assombração das lendas. E é extremamente parecido com as sereias ocidentais em certos aspectos.


Ningyo do Toriyama Sekien's Konjaku Hyakki Shūi. (Os Cem Demônios do Presente e do Passado 1781)

 O ningyo pode ser grande como uma pessoa, ou pequeno como uma criança, mas é sempre descrito como tendo um rosto de humano, e um corpo de peixe. As vezes ele tem cabelo, as vezes não, as vezes é belo, e as vezes tem uma bocarra de macaco cheia de dentes afiados e chifres. Sua voz é doce, como a música de uma flauta, e sua carne é saborosa, dando a qualquer um que prove dela incrível longevidade. Entretanto, capturar um ningyo era considerado tremenda má sorte, e os pescadores que pegavam um por engano sempre o jogavam de volta. Um ningyo aparecer morto em uma praia, era um presságio de calamidades ou guerra.

Ilustração de 1805 de um Ningyo com mais de 10 metros supostamente capturado na Baía de Toyama.

Acontece que o templo de Fujinomiya não é o único a ter o corpo mumificado de um yokai. No templo de Karukayado, perto da cidade de Hashimoto, Wakayama, temos esse outro ningyo mumificado. 



Extremamente similar a Sereia de Fiji, não é?

O fato é que nos corredores dos templos budistas e xintoístas por todo o Japão, estão uma legião de múmias monstruosas. Os restos preservados de yokais e demônios. Ningyo, Kappa, Tengu, Raiju, e diversos outros. Pode parecer estranho ter esse tipo de criatura em um templo, mas provavelmente faz mais sentido mantê-los ali, onde os sacerdotes podem vigiá-los de perto.

No templo Zuiryuji, em Osaka, existe uma sereia mumificada, que foi dada como oferenda por um mercador de Sakai em 1682. O templo também possui um Kappa mumificado.




O Templo Myouchi, na cidade de Kashiwazaki, Niigata, também tem uma.



 E templos não são os únicos locais que tem criaturas desse tipo.

Por anos, os donos da cervejaria Matsuuraichi, em Saga, mantiveram o mote "nos temos algo raro nessa casa". Após 17 gerações o significado original da frase já havia basicamente se perdido, até que em 1953, uma caixa de madeira com os dizeres "kappa" foi encontrada escondida no telhado. Hoje o Kappa mumificado está exposto para todos os visitantes.



Algumas dessas múmias podem até ser encontradas em museus.


Uma múmia de Kappa e duas de Tengu.

E como uma dessas criaturas foi parar nas mãos de um mercador Holandês?

Bem, na Edo (hoje Tokio) do século XVIII e XIX, e por quase duzentos antes disso, havia algo chamado misemono. Pense em uma quermesse, um pequeno festival, as vezes organizado rapidamente, com exibições de artesanato e coisas assombrosas, acrobatas, animais, lembranças sendo vendidas e atrações que serviam para atrair sorte, saúde e fortuna para os visitantes. Geralmente aconteciam para reunir fundos para um templo ou santuário especifico. E que melhor atração para provar que um templo merecia doações, do que as estranhas criaturas guardadas nele?

Uma das atrações que invariavelmente poderiam ser encontradas em um misemono, eram sereias mumificadas.

Escola P. T. Barnum de anunciar sereias. O produto final pode não parecer com a ilustração.

Agora, eu preciso explicar que, embora quando a pergunta sobre a origem dessas múmias de yokai é feita, a resposta padrão varie entre alguma lenda (implicando que são realmente os restos de um ser sobrenatural), ou que ninguém se lembra da origem de tais criaturas, as vezes a resposta é que elas, de fato, foram feitas por alguém, mas após um encontro com a criatura real. Uma forma de marcar o acontecimento. É como se a múmia criada fosse imbuída com a autenticidade da criatura. Como na história em que um pescador encontrou um ningyo morrendo, e com seu último folego, o ser previu uma época de grande prosperidade, mas também uma epidemia fatal que apenas poderia ser evitada mantendo uma efígie da própria criatura.

Ter sido construída por um pescador, não torna a múmia de um ningyo ou kappa menos legítima. A mágica vem da história que a acompanha, não das circunstâncias em que elas foram criadas.

Vale a pena lembrar das lendas sobre os Tsukumogami, uma classe de assombração composta por objetos que se tornaram yokais após completar 100 anos. E sua origem mundana não as histórias sobre eles menos assustadoras.
Kasa-Obake, Biwa-bokuboku, Bakezōri  e Chōchin-obake.  Que são um guarda-chuva, biwa, sandália e lanterna

Na época do Sakoku, a política isolacionista do xogunato Tokugawa, décadas antes do Comodoro Matthew Perry e sua frota em 1853, os holandeses eram os únicos ocidentais que podiam manter relações comerciais com o Japão. O mercador holandês que vendeu a lendária Sereia de Fiji ao Capitão Eades, provavelmente a comprou em um misemono em Dejima, uma ilha aritifical criada na baía de Nagasaki apenas para o comércio com estrangeiros.

Quando o comercio com o Japão já estava aberto, e a história de Sereia de Fiji de Barnum já havia percorrido ocidente e oriente, novas sereias mumificadas começaram a surgir em circos itinerantes e museus. Muitas eram muito parecidas com o original, já outras... 




Novas Espécies



A sereia de Buckland. Curiosities of Nature Vol 2 1860

Em Agosto de 1858, o Professor Richard Owen escreveu a Frank Buckland, pedindo que ele examinasse uma Sereia de Fiji, e escrevesse de volta a ele com os resultados. Buckland, animadíssimo com o pedido do eminente cientista, correu para o salão em Spitalfields, onde encontrou a sereia, exposta atrás de uma vitrine.

No exame ele chegou a conclusão que a sereia era feita com o tronco de um macaco costurado no que Buckland suspeitava ser uma pescada. Os dentes de macaco haviam sido transferidos para a mandíbula do macaco, junto com um incisivo humano, e o espaço para outro, para aparentar ter caído, um detalhe que impressionou Buckland. A impressão, segundo o relatório, era a de "um velho atravessado que estava tentando não rir".

 Buckland ainda examinou outras duas sereias, uma em uma loja de curiosidades em Hungerford, feita por um taxidermista de Londres, e outra que pertencia a um Capitão Cuming R. N., comprada em Yokohama.

 Um nicho de venda de sereias mumificadas para turistas havia surgido no Japão, com a demanda por elas no ocidente. Mas esses novos exemplares eram diferentes da Sereia de Fiji, e das outras nos templos, associadas ao ningyo. Como se tivessem sido feitos de um jeito mais simples, e rápido.
 Enquanto a Sereia de Fiji havia sido feita para ser exibida de pé, e tinha os braços junto ao rosto e cauda curvada, as novas sereias vinham em uma posição rastejante, além de ter pescoços finos e costelas muito mais proeminentes.

Como a sereia que hoje se encontra no Peabody Museum of Archeology and Ethnology, em Harvard. Curiosamente, esse exemplar veio da coleção pertencente ao museu de Moses Kimball, parceiro de P. T. Barnum e um dos organizadores da farsa original da Sereia de Fiji.


Uma analise recente da Sereia de Fiji do Horniman Museum, feito por Paolo Viscardi, curador de zoologia do Museu Nacional da Irlanda, com ajuda do Dr. James Moffatt, da St. George University of Londonincluindo radiografia, ultrassom, e um scan 3D, revelou detalhes interessantes sobre a fabricação desses espécimes "novos" de sereia.



A primeira revelação, foi a total ausência de qualquer parte de macaco. Na verdade, com exceção dos dentes encaixados na mandíbula e das barbatanas, a sereia não possuía nenhuma estrutura óssea. Ela foi montada com argila e tecido sobre uma base de madeira e arame, com o acabamento sendo feito com a pele de um peixe real, e hariko, a técnica japonesa de papier mâché.




Estranhamente, dos exemplares de ningyo japoneses já analisados, nenhum possui qualquer traço de macacos em sua composição. Como o exemplar comprado pelo holandês Jan Cock Blomhoff, diretor de comércio estrangeiro em Dejima entre 1817 e 1824, hoje no Museu de Etnologia de Leiden. Essa sereia era contemporânea da Sereia de Fiji, provavelmente feita na mesma época, e é do mesmo estilo, evocando o ningyo, mas sua analise também não apresentou nada de símio, apenas de peixe. 


Sereia de Jan Cock Blomhoff

É possível que a Sereia de Fiji original de fato possuísse a mandíbula de um macaco-japonês, uma espécie desconhecida por de Clift, que escreveu uma das primeiras analises, o que o fez incluir alusões a orangotangos, ou babuínos. Isso pode ter criado a persistente noção que as Sereias de Fiji eram feitas costurando macacos em peixes. Infelizmente, com o desaparecimento da Sereia original, nunca saberemos.




Isso não muda o fato que as sereias do segundo tipo, como a de Buckland, ou do Peabody Museum, apresentam um grande distanciamento das versões originais associadas ao ningyo, bem como de todo o seu contexto cultural e religioso. Houve uma transformação nas sereias quando elas começaram a ser construídas para colecionadores e turistas que passavam pelo Japão a partir de 1860, e eventualmente pelos taxidermistas e outros artistas que passaram a fazê-las no resto do mundo do início do século XX em diante.

Como já mencionei anteriormente, seres aquáticos fantásticos existem no folclore de diversas cultura, e geralmente, a interpretação sobre os paralelos entre eles é temperada pela cultura de quem as analisa.
 Certas representações desses seres tem significados específicos relacionados a certas narrativas de sua cultura de origem, mas isso não impede que esses significados sejam ofuscados por uma narrativa diferente.

A Sereia de Fiji é um ótimo exemplo dessa metamorfose.

Muitos museus e coleções de curiosidades pelo mundo classificam e discutem as Sereias de Fiji usando sua autenticidade, ou falta de autenticidade, como base da narrativa. Sempre voltando a notoriedade da armação criada por P. T. Barnum como ponto principal, e propagando a noção que eram quimeras de taxidermia, criadas com rabos de peixe costurados em macacos, e que o único motivo de merecerem atenção é o fato de serem uma fraude. Viscardi propôs nomenclaturas para os dois tipos mais comuns de Sereia de Fiji nos moldes da taxonomia clássica para fugir dessa ideia. As Sereia de Fiji nos moldes do ningyo seriam as Pseudosiren Eadesii, por conta do pobre Capitão Eades, que começou a exibi-la, e a sereia rastejante que surgiu depois, seria a Pseudosiren Bucklandii, por conta de Frank Buckland, que pesquisou várias delas.
 Mesmo elas não sendo criaturas vivas, a ideia representa um passo em direção a vê-las com algo com méritos próprios, já que os fatos por trás da fraude da Sereias de Fiji são igualmente merecedores de atenção, e seria uma boa opção começar a enxergá-las pelo que elas são, e não só porque tentaram passá-las por alguma outra coisa.

Talvez  essa divisão seja parte da bagagem dos seres de natureza dupla, sempre serem encarados de maneiras distintas. Humanos por um ponto de vista, peixes por outro, sereias de acordo com uma narrativa, dugongos e peixes-boi por outra, Ningyo e Sereias de Fiji.

 Provavelmente Kafka estava certo. O silêncio das sereias é mais impossível de se escapar do que o seu canto, e provavelmente vamos continuar tentando preencher esse silêncio por muito tempo ainda.


quarta-feira, 6 de junho de 2018

A Maldição da Safira Púrpura de Delhi





 A Safira Púrpura de Delhi.

Sua origem é suspeita, seu valor é contestável, e as consequências de possuí-la são invariavelmente ruins.  

Por conta das histórias que acompanham essa desafortunada joia, ela acabou ganhando um apelido, um nome que muitos consideram perfeitamente adequado.

"A Gema da Tristeza".

Mas o que tornou a Gema da Tristeza um artefato tão perigoso? Qual a sua origem? Que maldição sinistra ou entidade a acompanha tão de perto, ao ponto dela retornar ao dono após ter sido jogada em um rio, apenas para continuar a atormentá-lo?

Bem, vamos descobrir.




Uma Herança Especial



A primeira coisa que tenho de explicar sobre a Gema da Tristeza, a Safira Púrpura de Delhi....  é que a joia não é uma safira de verdade.

Pois é.

 A joia é uma ametista oval roxa, e não é das melhores ou mais valiosas. No local em que ela está exposta hoje em dia podemos ver que sua moldura de prata em formato de serpente já está e escurecida, e as duas gemas em forma de escaravelho que a acompanham, apesar de serem antigas, não são exatamente peças raras.

Mas sua falta de valor material não deixa o artefato menos intrigante.

A joia não era muito conhecida até ir parar no Museu de Historia Natural de Londres. Décadas atrás ela foi recebida pelo então curador do museu, Peter Tandy, como parte das doações especificadas no testamento de um benfeitor da instituição. Quando Tandy recebeu a joia, ela estava dentro de sete caixas e cercada de amuletos de proteção. Junto das caixas havia uma carta de seu último dono, Edward Heron-Allen.

 A carta em questão dizia:


“Para – Quem quer que seja o futuro dono desta Ametista. Essas linhas são endereçadas em luto, antes que ele, ou ela, assuma a responsabilidade de possuí-la.

Esta pedra é três vezes amaldiçoada e manchada com o sangue e a desonra de todos que já foram seus donos. Foi saqueada do tesouro do Templo do Deus Indra em Cawnpore durante a Rebelião Indiana em 1855 e transportada a este país pelo Coronel W. Ferris da Cavalaria de Bengala. Do dia em que ele a possuiu em diante, ele foi infeliz, perdendo tanto sua saúde quanto seu dinheiro. Seu filho, que a possuiu após sua morte, sofreu os mais persistentes infortúnios até que eu aceitei a pedra dele em 1890. Ele havia a presenteado a um amigo anteriormente, mas o amigo suicidou-se logo depois, e a deixou de volta a ele em seu testamento.

Do momento em que ela esteve em minhas mãos, desgraças me atacaram até que eu a cerquei com a serpente de duas cabeças que havia sido um anel de Heydon, o Astrólogo, envolta com placas Zodiacais e neutralizada com o Tau mágico de Heydon e dos dois escaravelhos de ametista do período da Rainha Hatasu, vindoss de Der el-Bahari (Tebas). Permaneceu, assim, quieto, até 1902, entretanto, não apenas eu, mas minha esposa, o Professor Ross, W. H. Rider, e a Senhora Hadden frequentemente viam em minha biblioteca o Yogi Hindu, que assombra a joia, tentando consegui-la de volta. Ele se senta em seus calcanhares em um canto do cômodo, cavando o chão com as mãos, como se a estivesse procurando ali.
  
Em 1902, sob protestos eu cedi a joia a uma amiga, que foi tão logo abatida com todo o tipo de desastre possível. Ao retornar do Egito em 1903, eu descobri que ela havia devolvido a pedra, e após mais um grande infortúnio cair sobre mim, eu a joguei no Regent’s Canal. Três meses depois ela me foi trazida de volta por um negociante de joias da rua Wardour, que há havia comprado de um dos indivíduos que vasculham os canais em busca de objetos de valor. Eu então a dei a uma amiga cantora, que genuinamente desejava a joia. Após isso, assim que ela tentou cantar, sua voz morreu, e ela nunca mais cantou desde então. 

Eu sinto que ela exerce uma influência sinistra sobre minha filha recém-nascida, então decidi fechar a joia em sete caixas, e depositá-la em meu cofre no banco, com instruções para que ela não veja a luz do dia novamente até trinta e três anos após a minha morte. Quem quer seja a abri-la, primeiro deverá ler este aviso, para então fazer o que bem entender com a joia. Meu conselho a ele, ou ela, é que a jogue no oceano. Teria feito isso muito tempo atrás, não fosse eu proibido de cometer tal ação pelo meu Juramento Rosacruz.

 (Assinado) Edward Heron-Allen

 Outubro 1904
  


É uma doação curiosa de se receber, não é mesmo? Está na mesma categoria de ganhar uma pata de macaco mumificada pertencente a um faquir que queria ensinar uma lição sobre destino, ou anel dourado na noite da festa de 111 anos do seu tio, que desapareceu durante o discurso.




Joias Amaldiçoadas



A Safira Purpura de Delhi não é um artefato único (no sentido em que ela não é a unica joia amaldiçoada a existir em um ponto específico da história. Eu tenho quase certeza que não existe uma segunda Safira Purpura de Delhi). Joias e tesouros que trazem infortúnios aos donos são uma ideia que existe a muito tempo. Provavelmente desde que o primeiro humano pensou em fazer algo que fosse bonito com metal e pedras brilhantes.

 Na mitologia grega havia o Colar de Harmonia, feito por Hefesto, e dado de presente a Harmonia, por ocasião de seu casamento a Cadmus. O colar em questão fazia com que a mulher que o usasse permanecesse eternamente jovem e bela, mas também trazia a maldição de trazer desastre a quem quer que o possuísse.

Estranho para um presente de casamento, e nos faz pensar o que será que Hefesto estava pensando com um presente de grego desses... até lembrarmos que Harmonia era filha de Afrodite, esposa de Hefesto, e de... Ares.

 Harmonia e Cadmus eventualmente foram transformados em serpentes, e o colar foi passado para a filha de Harmonia, Semele. Semele era uma das amantes de Zeus, e estava grávida de seu filho, Dionysus.  Um dia, Semele decidiu usar o colar, e nesse mesmo dia, recebeu uma vistia de Hera. A deusa insinuou a ela que seu amante não era realmente Zeus, e sugeriu que ela pedisse que ele se mostrasse a ele em sua forma real. Ela fez isso, Zeus se revelou e sua forma fulgurante, e Semele morreu (Dionysus teve de ser costurado na coxa de Zeus até poder nascer).
Polycines Dando o colar a Eriphyle. Vaso Grego, 440 a.C.

O Colar também foi possuído por Jocasta, esposa do rei Laius, e mãe de Édipo e... bem, acho que todos nós, eu, você, e o Sófocles, sabemos como essa história terminou não é?

Polycines herdou o colar e o deu a Eriphyle, esposa de Anphiaraus, para que ela o convencesse a lutar na guerra contra Tebas. Ao descobrir isso, Alcmaeon, filho de Anphiaraus, matou Eriphyle. Callirhoe, esposa de Alcmeaeon desejou ficar com o colar em seguida, o que causou uma longa trama de traições onde várias famílias morrem, e o colar termina consagrado a Athena no templo de Delfos. Durante a Terceira Guerra Sacra, o tirante fócida Phayllus rouba o colar do templo e o presenteia a sua amante. Pouco depois, seu filho enlouquecesse e incendeia a casa matando a ambos.

Nos mitos nórdicos temos o Andvaranaut, um anel pertencente ao anão Andvari, capaz de produzir ouro. Após perder o Advaranaut para Loki, Andvari o amaldiçoa, para que o anel causasse destruição e infelicidade a quem o possuísse. Loki, então, usa o anel para pagar Hreidmar, rei dos anões, por ter acidentalmente causado a morte de seu filho. Hreidmar é morto por seu outro filho, Fafnir, que desejava o Advaranaut para si, e após se transformar em um dragão por conta de sua avareza, Fafnir é morto pelo herói Sigurd (ou Siegfried), que clama o Advaranaut. Existem diversas versões da saga de desgraças que se segue depois disso, a Nibelungenlied, a Völsunga Saga, e a Edda Poética. Todas são longas, e todas são cheias de intrigas, guerra, e morte. 


Sigurd and Fafnir. Alan Lee, 1984

Em A República, de Platão, temos a lenda do Anel de Giges, que é usado como metáfora para a corrupção. Gigas, um pastor, encontra o anel no dedo de um cadáver, e descobre que ele tem o poder de torná-lo invisível. A tentação de usar o anel se mostra difícil de resistir, e ele passa a usá-lo para conseguir poder; seduzindo a esposa do rei, roubando, traindo, e matando. As desgraças parecem ser apenas destinadas aqueles se viram vítimas do portador do anel, mas uso do artefato acaba se mostrando um vício, e o dono passa a não pensar em nada a não ser a necessidade de manter o anel, e nunca perdê-lo

Hmmm, isso me lembra algo.

Oh, é claro...

No legendarium de Tolkien diversas joias são o estopim, não apenas de discórdia, mas de batalhas, massacres, e acontecimentos que alteram o mundo todo. Das três Silmarils causando assassinatos, fratricídios, juramentos de sangue, guerras e a queda de reinos inteiros, passando pela Pedra Arken em O Hobbit, até os Anéis do Poder em O Senhor dos Anéis. 

Mas também temos joias reais que são acompanhadas de histórias sangrentas.

O Rubi do Princípe Negro, por exemplo que hoje faz parte das Joias da Coroa Inglesa (e nem é um rubi de verdade, é só o nome). Ele começa sua trajetória de infortúnios no século XIV, quando seu dono, o Sultão de Granada é morto por Pedro, o Cruel, Rei de Castilha. Pedro fica com a joia, e logo é atacado por seu meio-irmão, e a batalha só é vencida com ajuda de Edward de Woodstock (o "Príncipe Negro"), que então ganha a joia de presente. Na mesma época em que ganha a joia, Edward contrai uma doença misteriosa que viria a matá-lo. Henrique V usou a joia na batalha de Agincourt, onde quase morreu, e Ricardo III estava com ela quando morreu na Batalha de Bosworth.


O Orlov Negro 1/3 do Olho de Brahma
A lista de mortes dos donos do Diamante Hope, desde que saiu da Índia, é extensa, e inclui suicídios, overdoses, enforcamentos, quedas de precipícios, decapitações, e desmembramento por cães raivosos. O Olho de Brahma, outro famoso diamante vindo de uma estátua Indiana, causou que três de seus donos morressem da mesma maneira, pulando de lugares altos, sem contar outros tipos de morte e infortúnios, até que a maldição fosse quebrada quando o diamante foi dividido em três,




Maldição?


 Mas e a maldição da Safira Púrpura de Delhi? O quanto de sua história é plausível de ter acontecido? O quanto dela pode ser confirmada?
 Podemos começar olhando para a pessoa que deixou a joia para o Museu de História Natural, em todas as suas caixas lacradas e com seus amuletos protetores.

Edward Heron-Allen em 1886 e em 1926
Edward Heron-Allen (1861-1943) foi um polímata britânico, e membro da Royal Society. Cientista, escritor, violinista, quiromante (sério), e especialista em grafologia, Heron-Allen traduziu diversas obras de Omar Khayyam para o inglês, e uma das bibliotecas do Museu de História Natural de Londres, a de micropaleontologia, hoje leva seu nome. 
 Mesmo sendo um respeitado e bem-educado estudioso científico, parece que Edward Heron-Allen realmente acreditava que algum espírito maligno acompanhava a Safira Púrpura de Delhi, tendo mencionado isso em diversas conversas e cartas, algumas delas com Oscar Wilde, que era seu amigo pessoal.

 Mas com ou sem espírito acompanhando, a joia provavelmente já tinha uma história sangrenta.
  
 A rebelião em Cawnpore, que ele menciona na carta que acompanhava a Safira foi parte da Revolta dos Sipaios, um prolongado período de levantes armados na Índia contra a ocupação britânica. O massacre em Cawnpore foi um dos pontos principais do conflito (quem leu “A Casa a Vapor” do Júlio Verne vai reconhecer os acontecimentos).

Mesmo que o conflito tenha levado os Britânicos a rever alguns de seus conceitos e atitudes quanto a tradições e costumes de outros países, enquanto ele acontecia, o exército agia de modo a mandar uma mensagem específica a fim suprimir a rebelião e punir os envolvidos. Não era incomum que templos fossem saqueados durante esses conflitos, e que soldados levassem diversos tesouros com eles ao voltarem para casa.
  
 Como já mencionei, outras joias famosas, e supostamente amaldiçoadas começam suas narrativas sendo roubadas de alguma estátua ou templo da Índia, e continuam essa narrativa com uma série de desgraças e mortes ao decorrer das décadas. 

 A equipe do Museu de História Natural de Londres teoriza que toda a história de maldições, desgraças e espíritos assombrando a joia tenha sido inventada por Heron-Allen, principalmente por que depois de fechar a joia em seu cofre, ele publicou uma história intitulada "The Purple Sapphire", sob o pseudônimo Christopher Blayre. Talvez a Safira Purpura de Delhi não é uma safira de verdade porque ele não queria gastar uma fortuna em uma joia legitima, e por isso adquiriu uma ametista para provar sua narrativa.
 Mesmo assim, vários dos detalhes dados por ele na carta podem ser averiguadas como verdadeiros por depoimentos e registros da época. Além disso, o neto de Heron-Allen, Ivor E. Jones, se recusa a tocar a joia até hoje.

 Em 2004, antigo chefe de micropaleontologia do Museu de História Natural, John Whittaker, tentou levar a joia ao primeiro simpósio anual da Heron-Allen Society, e no caminho ele se viu cercado por uma terrível tempestade que o impediu de continuar.

“o céu escureceu e foi tomado pela tempestade mais terrível que eu já presenciei... consideramos abandonar o carro e fugir, e minha esposa estava gritando ‘Por que você trouxe essa maldita coisa junto?’”

 Isso poderia ser tomado apenas como um incidente isolado, mas quando Whittaker tentou levar a joia ao segundo simpósio no ano seguinte, ele foi acometido por uma gastroenterite viral que o deixou tão debilitado que ele não pode ir ao evento.

 No terceiro ano em que ele tentou levar a joia, o que impediu foi uma hospitalização por um súbito caso de pedras nos rins.
  
 É curioso pensar no efeito que essas "maldições" tem. Até que ponto não é apenas influência da aura formada pela história do objeto?

Vou usar um exemplo rápido.


Uma série de quadros de crianças chorando que foram produzidos em massa durante os anos 50, e se tornaram muito populares por anos.

Em setembro de 1985, o tabloide sensacionalista britânico The Sun mencionou que, segundo o bombeiro de Essex, esses quadros eram frequentemente encontrados intactos nas ruínas de incêndios.
 Em novembro, a crença de que os quadros era amaldiçoados e causavam incêndios já havia se espalhado tanto as pessoas estavam organizando grandes fogueiras coletivas para destruir os quadros.
(...o que, em retrospecto, é meio estupido. Usar fogo pra destruir o quadro supostamente mágico a prova de fogo que causa incêndios)

 O mistério por trás dos quadros incendiários era algo mundano. Eles eram pintados com um verniz que retardava chamas, e como os quadros eram muito comuns, varias casas tinham um exemplar. Nas casas que possuíam um quadro e pegavam fogo, geralmente o que ficava relativamente intacto depois do incêndio, era justamente o quadro. Mas o medo e a superstição transformaram essa característica em uma aura sinistra, e acidentes não-relacionados em uma maldição.

 Não há como confirmarmos que a maldição da Safira de Delhi é real.

 Talvez realmente exista algo de sinistro associado, tanto a ela quanto a outras jóias do tipo, como o Diamante Hope, ou o Olho de Brahma. Uma retribuição sobrenatural, um castigo do além, uma lição de Karma. Ou talvez tudo seja apenas sinistro de uma maneira mais mundana, e a unica maldição delas esteja associada a marca colonialista e o sangue que elas carregam em sua história. Uma longa lição inevitável referente a ganância humana.

 Mas a verdade é que não tenho uma resposta para esse ponto específico.

 A narrativa que envolve a joia, no entanto, é bem real.

 Simplesmente ler a história apresentada por Heron-Allen em sua carta, seja ela real ou inventada, influencia o modo como encaramos a Safira de Delhi. E as vezes o modo como percebemos ou como nos sentimos em relação a algo desse tipo, as vezes é o suficiente para determinar sua realidade.

 A história da maldição da Safira Púrpura de Delhi é o tipo de história que precisa ser passada adiante para continuar existindo (tal qual a maldição propriamente dita, só que com menos desgraças), e... bem, eu acho que fiz a minha parte.

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