quarta-feira, 23 de maio de 2018

Um Gabinete de Curiosidades

Gabinete de Curiosidades. Domenico Remps, 1690

Wunderkammer, Kunstschränken, Raritätenkabinetten.

Palavras diferentes que nomeiam um mesmo conceito.

Precursores dos museus modernos, essas coleções de objetos começaram a aparecer no meio do século XVI, tanto como repositórios de coisas notáveis quanto locais para a exibição do conhecimento contemporâneo. Um lugar onde, por meio de diversos exemplos, independente de serem caprichos da natureza ou coisas criadas por mãos humanas, era possível explicar como era o mundo em toda a sua diversidade.

Ou pelo menos, explicar aproximadamente como, talvez, o mudo era.

 Fósseis, pedaços de coral iridescente, um relicário medieval, e jarros contendo espécimes bicéfalos conservados em uma prateleira. Em outra, plantas tropicais raras, bezoares, ídolos desconhecidos de algum país distante, e um esqueleto de uma ave já extinta.

Instrumentos de navegação modernos (para o século XVII), retratos pintados em medalhões do tamanho de uma noz, um imenso osso de baleia, e uma cópia funcional em escala do Mecanismo de Antikythera.

Um possível chifre de dragão.

O olho de vidro de um pirata famoso, diagramas para uma máquina voadora projetada por Leonardo Da Vinci, uma joia que um dia já foi olho de um estátua na Índia e uma máscara xamânica da Era do Gelo.

Formações cristalinas das paredes de cavernas longínquas onde percebe-se a impressão da carapaça de um inseto desconhecido.

Um ovo petrificado com uma pequena rachadura onde podemos ver uma garra saindo.

Um jacaré empalhado pendendo do teto.
 
Objetos que juntos formam um circuito ao redor do planeta, cruzam diferentes assuntos, interseccionam a ciência e a superstição.

Esses eram os Gabinetes de Curiosidades.

Gravura de Dell'Historia Naturale, de  Ferrante Imperato (Nápoles 1599),  a ilustração mais antiga representando um Gabinete de curiosidades naturais.
É interessante como os Gabinetes de Curiosidades, apesar de terem em sua função o objetivo de desmistificar o universo, de expor frações do mundo para serem desvendadas através de seu estudo por métodos científicos (ou das filosofias naturais, como seria dito na época), também causam exatamente o efeito oposto a isso.

 Um Gabinete de Curiosidades invariavelmente criava um senso de que o mundo era misterioso, e muito mais estranho do que imaginávamos.

Separando os elementos da palavra Wunderkammer, nos temos "kammer"  (um cômodo, um quarto), e nos temos "wunder" (um prodígio, uma maravilha), e essa é sem dúvida a definição perfeita para estes lugares.

 Uma câmara de maravilhas e de monstruosidades, onde segredos desvendados e grotescos erros de taxonomia ocupavam o mesmo espaço físico e uma mesma ideia.



 A Taxonomia de um Gabinete



  Mas além dessa função dupla, criando mais conhecimento e mais mistério ao mesmo tempo, os Wunderkammers do passado também possuíam uma outra característica.
 Essa variava de Gabinete à Gabinete, é claro.
 Eles serviam como uma manifestação palpável do próprio colecionador e de todos os seus interesses.
 
 
(mas não toque, por favor, os objetos são raros e frágeis)

 Gabinetes pertencentes a nobreza geralmente tinha uma função social mais predominante. Manter um trazia status ao dono. Esses eram dominados por preocupações mais estéticas e uma predileção pelo “exótico”.
 Em 1587 Gabriel Kaltermackt aconselhou Cristiano I, Eleitor da Saxônia que três tipos de item eram indispensáveis para montar seu “Kunstkammer” sua câmara da arte: primeiro ele deveria reunir esculturas e pinturas, “itens curiosos de lugares distantes”, e “galhadas, chifres, garras, plumas, e outras partes pertencentes a estranhos e curiosos animais”.

Canto de um Gabinete de Curiosidades pintado por Franz Francken, o Jovem, em 1636.

 Já os Gabinetes pertencentes a estudiosos eram mais voltados a propósitos científicos.
 Mesmo assim, eles também possuíam sua função social. Além de seu uso para pesquisa, para estabelecer status entre outros filósofos naturais, os Gabinetes também serviam como entretenimento.

 Um bom exemplo desse uso das coleções científicas, eram as reuniões da Royal Society. Muitas dessas reuniões eram basicamente um palco aberto para qualquer membro exibir as descobertas feitas ao estudar suas curiosidades. Ainda que as exibições parecessem ser puramente investigativas ou acadêmicas, os membros da Royal Society favoreciam a ideia do “entretenimento educado”, ou o alinhamento do aprendizado e da cultura com o entretenimento. Eles adoravam  explorar as “maravilhas da natureza”, especialmente quando tinham uma audiência para suas exibições.
 As implicações disso nem sempre eram boas, mas esse não é o assunto do momento.


Segundo Wolfram Koeppe, curador do Metropolitan Musem of Art, a formula da organização de um Gabinete de Curiosidades tinha três ingredientes que demonstravam a educação ampla e todo o aprendizado humanista do dono. Eles eram: naturalia, qualquer coisa vinda da natureza, arteficialia, ou artefacta, que eram os objetos manufaturados, e scientifica, que serviam como testamento da habilidade humana de dominar a natureza, e isso incluía desde astrolábios e relógios, até autômatos.

Museo Cospiano, o Gabinete de Curiosidades de Ferdinando Cospi, 1677.

 Mas o fato é que, em um primeiro momento, apenas observando, é impossível separar os dois tipos. Os objetos de um Wunderkammer quase sempre são apresentados sem etiquetas, sem narrativas. Seus significados e contextos originais, ou mesmo seus nomes não fazem parte do quadro. Maravilhas da natureza apresentados como curiosidades, representantes da cultura da humanidade de outros tempos se tornam ephemera. 

Considere o Pinterest, onde itens que permeiam um tema nebuloso são organizados de uma maneira não exatamente racional, mas visualmente agradável, sem que exista algum contexto para cada elemento. 



É exatamente assim que funciona a organização de um Gabinete de Curiosidades.

 A maneira que cada um dos elementos de um Wunderkammer era organizado em relação aos outros dependia unicamente no senso estético do colecionador, já que os objetos em questão eram representações de seus interesses e de seu gosto, independente do nível de conhecimento científico sobre cada um. Todo o seu “mundo interno” era manifestado ali, enquanto ao mesmo tempo ele reunia objetos que representavam as maravilhas do mundo em sua infinita variedade, movido unicamente pela curiosidade.

"Um Gabinete de Colecionadoor" Johann Georg Heinz, 1664.



Catálogos do Insólito



Entretanto, quando o conteúdo de um Gabinete de Curiosidade era catalogado e publicado, a coleção de artefatos se tornava o ponto de partida para várias especulações filosóficas e científicas. 

 Um dos mais famosos Gabinetes de Curiosidades do século XVII era o do médico, naturalista, historiador e antiquário dinamarquês Olaus Wormius (1588-165). Sendo um filosofo natural, Wormius especulou muito sobre as origens de certos itens, compilando gravuras e teorias sobre cada um deles. Um ano após sua morte, todos os tratados de Wormius sobre seu Gabinete foram publicados sobre o título Museum Wormianum, e embora ele não tenha desvendado o mistério de Cordeiro Vegetal da Tartária, um ser que supostamente era uma mistura de animal e vegetal (mas que na verdade era um tipo de samambaia), ele conseguiu estabelecer que os chifres que muitos clamavam ser se unicórnios na verdade vinham de narvais.

Gravura do frontispício do Museum Wormianum, de 1655.

Fato e ficção tinham a tendência a se misturar em Gabinetes de Curiosidades.

John Tradescant, o Velho (1570–1638), que era botânico do Duque de Buckinham, e seu filho, John Tradescant, o Jovem (1608–1662), possuíam uma grande coleção conhecida como A Arca de Tradescant.
  
 O acervo dos Tradescant incluíam flores, vinhas, e arvores frutíferas provenientes da Russia, Mediterrâneo, Argélia, França, Bermuda, Caribe e das Índias Orientais, conchas, um manto de pele de veado supostamente pertencente ao Chefe Powhatan Wahunsenacawh (adquirido por John Tradescant, o Jovem, em uma viagem até Virginia, em 1637), um Dodô das Ilhas Maurício, o maxilar de uma morsa, a mão de uma sereia, um ovo de dragão, duas penas da cauda de uma fênix, um pedaço da cruz verdadeira, um frasco do sangue que choveu sobre a Ilha de Wight, e um Cordeito Vegetal da Tartária, o Borametz.

Cordeiro Vegetal dos Tradescant,
 Garden Museum, Londres.
 Em 1659 a Arca de Tradescant foi adquirida por Elias Ashmole (1617–1692), que era membro da Royal Society, e além de ser um químico e antiquário, mantinha um grande interesse em botânica, astrologia e alquimia. Ele já havia financiado a publicação do catálogo do Gabinete três anos antes, sob o título “Musaeum Tradescantinum”, e ao comprar a coleção, ela foi unida a sua própria, que continha inúmeros manuscritos astrológicos, médicos e históricos. 

Em 1675 a coleção e biblioteca de Ashmole foram doadas a Universidade de Oxford, e formaram a fundação do que hoje é o Ashmolean Museum.

Museo Kircheriano no Colégio de Roma, 1679
Athanasius Kircher (1602–1680) foi um polímata alemão, e ele era conhecido como “O Mestre de das Cem Artes”, devido a sua longa lista de interesses. Esses interesses incluíam: a exploração subterrânea (ele desceu até o Monte Vesúvio. Ativo.), a invenção de aparelhos inovadores (relógios magnéticos, lanternas mágicas, harpas eólicas, órgãos hidráulicos, autômatos, e o primeiro megafone), biologia (ele propôs que a peste negra era causada por micro-organismos, e argumentou que muitos animais se transformavam ao mudar para ambientes diferentes, como cervos que se tornam renas após muitas gerações em um clima frio) e curiosamente, a proposta de um instrumento musical chamado Katzenklavier, um piano feito de gatos.

 Kircher possuía um enorme Gabinete de Curiosidades no Colégio Romano, onde ele lecionou por mais de quarenta anos. Conhecido por Museo Kircheriano, a coleção incluía, entre outros itens, um suposto aparelho de moto perpétuo, e uma lendária cabeça de bronze falante (como a que Roger Bacon também possuía).

 O Gabinete de Curiosidades de Athanasius Kircher acabou dando origem ao Museu Nacional Romano.


Sir Thomas Browne (1605-1682) era outro desses polímatas. Especialista em diversas áreas, de embriologia até arqueologia, passando por literatura, etimologia, anatomia, história, ornitologia, e até alquimia. E sua coleção, além de antiguidades e exemplos de volumes raros, continha até um chifre de unicórnio, presente de seu amigo Arthur Dee (filho do famoso John Dee, Mago e Astrólogo da Rainha Elizabeth I).

Presa de Narval exposta no Grant Museum of Zoology and Comparative Anatomy, Londres.

Browne, além dos catálogos de seu próprio acervo, também deixou entre seus inventários um curioso documento chamado Musaeum Clausum (O Museu Selado, ou Trancado), também conhecido por Bibliotheca Abscondita.

 O Musaeum Clausum lê como um catálogo qualquer para um Gabinete de Curiosidades do passado... não fosse pelos itens nele listados.


Um inventário de livros, antiguidades, gravuras e raridades nunca vistos por olhos ainda viventes. A data do documento é um mistério, e onde se encontra a coleção mencionada dele também.

É um tratado tão melancólico quanto seria a lista dos livros perdidos da Biblioteca de Alexandria, mas também é cômico, devido as descrições fantásticas e absurdas dos itens descritos.

 Na lista são mencionadas, de maneira curta e concisa: cartas de Aristóteles, Cícero, Ovídio, e até mesmo as epístolas de Sêneca a São Paulo. Documentos contendo um relato tão detalhado da marcha de Aníbal até a Itália, que especifica até o tipo de vinagre usado para partir as rochas da montanha, sua quantidade, e onde ele o conseguiu; quadros mostrando o fundo do Mar Mediterrâneo em seus mínimos detalhes, a batalha de Alcazar gravada em um ovo de avestruz, A múmia conservada de um monge, a Batraquiomáquia de Homero, épico que conta a batalha entre os ratos e os sapos, esculpida na mandíbula de um peixe, a pele de uma serpente nascida da medula espinhal de um homem, a Pyxis Pandoræ, um jarro contendo o Unguentum Pestiferum que começou a terrível Praga de Milão de 1630, e um misterioso vidro contendo um destilado de Sais Æthereos, selado hermeticamente em mercúrio, e tão volátil que não pode nem mesmo receber luz direta, só podendo ser mostrado durante o Inverno sob a luz indireta de uma pedra fosforescente.

Se Browne inventou a lista como sátira evocativa dos sentimentos sobre a perda de tesouros intelectuais da antiguidade (como bom adepto do Método Baconiano), ou se é de fato uma relíquia, o único fragmento que resta de um tesouro perdido no tempo não temos como saber.

 E na verdade eu não tenho certeza se isso importa muito. 


Musaeum Clausum segue a mesma fórmula de um Gabinete de Curiosidades físico. Ele mistura o suficiente do que é comprovado, histórico e científico, com o que é nebuloso, fantástico, e improvável. E com isso ele provoca o mesmo sentimento (mas de maneira levemente meta), o sentimento de que você aprendeu algo novo sobre um determinado assunto, mas que o nível de mistérios existentes aumentou exponencialmente por conta disso. 

E... bem, eu acho que é isso que eu quero tentar com esse blog.

Bem vindos a esse Gabinete. Ele pode parecer um tanto vazio por enquanto, mas logo mais itens serão acrescentados. 

Cuidado, alguns deles podem morder, deixar maldições, e te seguir para casa.








3 comentários:

  1. Serei seu leitor aqui também. Obrigado por sua dedicação a esses entretenimentos tão interessantes.
    Abraços.
    Cuide-se.

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  2. Vim comentar aqui para não te perder de vista. Adoro o jeito que você conta às curiosidades históricas. Beijão

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