sexta-feira, 1 de junho de 2018

O Crocodilo Que Paira Sobre Nós





Jacaré significa "aquele que olha de lado".

E tudo começou quando me virei para o lado e olhei pela janela.

Quando eu era criança havia uma loja de materiais de construção perto da estação de trem de onde eu moro. Eu nuca entrei na loja, só a via pela janela, do alto do banco em que me sentava no ônibus. A loja tinha caixas d’água na frente, rolos de correntes grossas, barris, e, se bem me lembro, uma âncora (acho que ela também vendia material para pesca? Isso já faz muito tempo).

 Enfim, não era nada disso que chamava minha atenção. O que chamava minha atenção era que, ali, pendendo do teto por duas correntes, a loja tinha um enorme jacaré empalhado.

Aquele jacaré me fascinava.

Eu nunca desci do ônibus antes do ponto para ver o jacaré de perto, mas ele já havia capturado minha imaginação. Depois disso, um jacaré (ou crocodilo, eu não sou exigente) empalhado se tornou uma das peça de decoração que eu almejava ter um dia.

Um antigo, pra nenhum jacaré precisar morrer pra isso.

A ideia já estava compartimentalizada em minha mente há alguns anos quando li "The Sword in the Stone", do T.H. White (que foi adaptado na animação A Espada Era A Lei), especificamente, a cena em que o Wart visita a cabana do Merlyn, que imediatamente chamou minha atenção.


 Corkindrill?

 O que diabos é um corkindr... oh!

 Crocodilo.

"Merlyn's Cottage" ilustração de Alan Lee para "The Sword in the Stone"

 E esse não era o único livro que eu já havia visto com algo assim. Com certeza não foi o ultimo.

Em "The Magic Bed Knob"  da Angela Norton (mesma autora de "Os Pequeninos") temos essa cena em que as crianças estão na casa de Miss Price, a bruxa que está tomando conta deles durante a guerra:



Ilustração de Erik Blegvad para "Bed-Knob and Broomstick", que junta os dois livros da série.

"The Bagic Bedknob", junto com o livro seguinte "Bonfires & Broomsticks" virou o filme  de 1971 "Bedknobs & Broomsticks" ("Se Minha Cama Voasse") que eu acho mais legal que Mary Poppins - unpopular opinion.

Dois usuários de magia diferentes, em livros diferentes, com as mesmas preferências em decoração. Isso pode muito bem ser uma coincidência, certo? 

Bem, vamos seguir adiante, checar mais alguns livros e ver onde isso dá.

Em seu "The Tough Guide to Fantasyland" (1996), Diana Wynne Jones (a autora de "O Castelo Animado"), encontramos o verbete sobre os jacarés nos mundos de fantasia:



 Curioso (Será que quando o mago possui um crocodilo ele não é amigável?).

 Mas vamos ver quantas outras obras de fantasia eu já vi em que isso se repete.

 Quem me conhece pode confirmar o fato de que o Sir Terry Pratchett tem sido meu autor de Fantasia favorito há anos (porque é comum eu começar a falar sobre a obra dele e não parar mais). Na verdade ele é o meu autor favorito, ponto final. Eu nunca irei de parar de defender a obra dele contra esse pessoal que acha que ele só escrevia "uns livros com umas piadas", ou que ele era "tipo Douglas Adams" (tremenda pista sobre a ignorância sobre a obra dele, essas declarações). Os livros dele eram bem mais que isso, e poucos autores de Fantasia já conseguiram fazer o que ele fez em sua obra, seja nos aspectos de crítica social, política, religiosa, sobre analise do comportamento humano, sobre a importância das histórias, sobre funcionamento das histórias (dentro de uma história), e é claro, sobre o que acontece quando você decide abrir o seu bar de frutos do mar no lugar do velho templo da Rua Dagon durante a lua cheia do Solstício de Inverno.

...pobre Sr. Hong.

Enfim, o caso é que se você já  leu um bom número de livros de Discworld, você sabe que um mago que se preze, tem um crocodilo empalhado (ou jacaré) pendurado em seu local de trabalho.

 Em A Luz Fantástica (ainda o segundo livro da série) temos a cena em que Trymon entra no escritório do Arquireitor Galder Ceradotempo, da Universidade Invisível:


 E mais adiante no livro, temos a loja mágica de itinerante de Skillet, Wang, Yrxle!yt, Bunglestiff, Cwmlad & Patel (Est. Various):



Em O Aprendiz de Morte temos a sala de Cutwell


Em Soul Music, Quoth, o corvo (que trabalha para um mago, no posto de corvo que fica empoleirado sobre um crânio) explica sobre a indumentária obrigatória de um mago:



Terry Pratchett tinha um conhecimento considerável sobre o funcionamento desse tipo de convenção das histórias fantasia, e também como elas origem na história do mundo real, então estamos no caminho certo.

Loja mágica no jogo para PC "Discworld II: Missing Presumed...!?" . Crocodilo no lado direito (O Eric Idle fazia a voz do Rincewind)

 E se voltarmos um pouco mais no tempo em busca de exemplos? 

 No conto "The Return of the Sorcerer" (1931) de Clark Ashton Smith (da turma do Lovecraft e Robert E. Howard) temos a descrição do escritório do recluso John Carnby, que contrata o protagonista, Ogden, para traduzir o temido Necronomicon:




No livro "Shadows on the Rock" ( também de 1931) de Willa Cather, temos essa passagem, falando sobre a loja de boticário do pai da protagonista, Cecile:



 No romance "Anastasius, or Memoirs of a Greek"  escrito em 1819 por Thomas Hope, levemente baseado em suas viagens pela Grécia e Oriente-Médio, temos esse trecho:
  


Mais antigo?

Entre 1591 e 1595 Shakespeare escreve a peça Romeu & Julieta (baseada no poema "The Tragicall Historye of Romeus and Juliet", publicado pela primeira vez em 1562 por Arthur Brooke), e na primeira cena do quinto ato temos a descrição da loja do boticário que Romeu consegue seu veneno:

Pendida via-se uma tartaruga em sua pobre loja,
Um crocodilo morto e empalhado, e muitas outras peles
De peixes desconformes

Romeo and the Apothecary. H. C. Selous, 1830


































 Eu poderia continuar a dar exemplos, mas acredito que já estabelecemos que os crocodilianos empalhados pendendo do teto são algo que existe na ficção, e se existe na ficção, alguma origem isso deve ter fora dela...



 As  Origens



O ultimo exemplo que dei foi em uma obra de Shakespeare, e já que estamos no reinado de Elizabeth I,  eu preciso mencionar o Doutor John Dee.

 John Dee foi matemático, astrônomo, geógrafo, e filosofo natural e oculto. Ele lecionou na Universidade de Paris antes mesmo de completar trinta anos, se tornou o conselheiro particular e astrólogo da rainha Elizabeth I (e jogou pra ela a ideia de um Império Britânico), e devotou grande parte de sua vida à alquimia, a adivinhação e a filosofia hermética, conduzindo diversos experimentos com o talvez charlatão Edward Kelley, onde desenvolveram o sistema Enoquiano de magia, e supostamente se comunicaram com espíritos angélicos.

Aqui temos uma gravura de John Dee e Edward Kelly realizando um de seus experimentos. Oh, veja só o que eles tem pendurado no teto...



 Certo, então crocodilos (e jacarés) empalhados eram comuns nos locais de trabalho de magos reais. 

 John Dee realizando um experimento diante da Rainha Elizabeth I. pintura de Henry Gillard Glidoni (1913)


E quanto a boticários reais?

Sim, eles também possuíam seus crocodilianos empalhados, aparentemente.

Ilustração de Confectbuch und Hauß Apoteck do farmaceutico Walther Hermann Ryff, 1610

E quem mais também dava preferência a esse pedaço de decoração?

 Alquimistas?

 Parece que sim.

Interior de Laboratório com um Alquimista, pintura de David Teniers, o Jovem, Século XVII

E é claro, temos os filósofos naturais e seus Gabinetes de Curiosidades.


O gabinete de artes e história natural (Kunst-und-Naturalienkammer) criado por August Hermann Francke em 1698. Considerado o único Gabinete de Curiosidades do período Barroco preservado totalmente intacto

 Os Jacarés (e crocodilos) empalhados pendurados, então, são associados aos Gabinetes de Curiosidades dos filósofos naturais, laboratórios de alquimistas, lojas de boticários, locais de trabalho dos farmacêuticos, e até mesmo os consultórios dos antigos cirurgiões-barbeiros.

Cirurgião-Barbeiro Sangrando Paciente, Jan Josef Horemans, o velho (1682-1759)

 Lojas de boticários e farmácias antigas geralmente eram cheias de todo o tipo de espécime exótico que pudesse ser usado como ingrediente de remédios e infusões, então não é tão surpreendente que eles fossem encontrados em tais lugares. Eventualmente, o crocodilo empalhado se tornou quase que uma marca registrada dos estabelecimentos, como o poste listrado é para os salões de barbeiro (da variedade que não faz sangrias ou amputa membros).
  
Jacaré da Farmácia Municipal mais antiga da Europa, na cidade de Talinn, Estônia. O lugar existe desde 1422.
  
 Existe uma conexão tanto entre crocodilos e a arte da cura quanto com as artes místicas. Na medicina chinesa, crocodilo desidratado era usado para o tratamento de problemas respiratórios (e era possível que isso funcionava. No processo de desidratar o crocodilo, as vezes o transformando em pó, envolvia uma grande quantidade de cânfora, que ajuda a aliviar casos leves de asma). E no Egito tínhamos deusa Taweret, invocada durante partos, possuía as costas e cauda de crocodilo, e Sobek, representado com uma cabeça de crocodilo, que possuía vários poderes para afastar o mal.

 Existem registros de viajantes sobre a prática de pendurar crocodilos sobre portões e passagens em geral, no Egito, até meados do século XIX. 

Richard Burton escreveu:

“No cemitério sagrado em Meccah, o aloe, aqui tal qual no Egito, é pendurado como um crocodilo seco sobre as casas como um talismã contra espíritos do mal”
 (Richard Burton, Personal Narrative of a Pilgrimage do Al-Madinah & Meccah, 1893)

Portão de Siout (Asyut), Egito. The sunday Magazine for Family Reading ,1878
 Peregrinações "ao oriente" (em sua mais abrangente definição) como a feita por Richard Burton foram muito comuns durante séculos. Europeus religiosos faziam viagens até a Terra Santa por razões espirituais (ou para ganhar algum mérito entre outros europeus religiosos da época), pintores iam em busca de inspiração (e haxixe), escritores iam em busca de aventuras para contar mais tarde (e haxixe), comerciantes iam para conseguir produtos incomuns, e ainda existiam, é claro, as viagens com fins de conquista, desde as primeiras Cruzadas até a Campanha do Egito de Napoleão Bonaparte.



"Como um sinal da viagem imperialista, o crocodilo empalhado se tornou um item de colecionador, seu corpo preservado funcionando como um substituto para "o Oriente". Assim, durante a campanha de Napoleão no Egíto, um dos objetivos de Dominique Vivant Denon enquanto ele acompanhava Louis Charles Antoine Desaix ao Alto-Nilo, era capturar um filhote de crocodilo, como se o possuir permitisse que segurasse o próprio Egito em suas mãos."  
(Victorian Animal Dreams - Representations of Animals in Victorian Literature and Culture, editado por Deborah Denenholz Morse & Martin A. Danahay)


Pequenos crocodilos empalhados acabaram se tornando lembranças populares da viagem, por serem animais diferentes e incomuns na Europa. O fato de serem relativamente fáceis de preservar também ajudou nisso (um dos mais antigos exemplos de taxidermia é um crocodilo de 1623, parte da coleção do Museu de História Natural de St. Gallen, na Suíça). Um grande número dos crocodilos de boticários, alquimistas, místicos e filósofos naturais provavelmente tem essa origem, dados de presente, ou tendo sido adquiridos em primeira mão, durante viagens.

Dependendo do poder aquisitivo do viajante, exemplares maiores, e até vivos, eram levados. Mais de um Rei trouxe de volta um crocodilo e o colocou para viver no fosso de seu castelo, e em climas mais quentes, como na Espanha, e na Itália, existem relatos de exemplares que escaparam e causaram vários problemas antes de serem capturados ou abatidos.




 Castelos & Catedrais




 Diz a lenda que em 1260, um Sultão mandou um embaixador até o rei Alfonso X de Castilha, para pedir a mão de sua filha em casamento. O embaixador trouxe presentes, entre eles uma presa de elefante, uma girafa domesticada para montaria, e um crocodilo do Nilo, vivo. Alfonso não aceitou a proposta do Sultão, e devolveu todos os presentes, com exceção da girafa e do crocodilo. Quando o crocodilo morreu, é dito que ele foi empalhado e pendurado na Catedral de Sevilha, sobre o pátio de Los Naranjos.

 O lugar ficou conhecido como La Puerta del Lagarto.
 
Puerta del Lagarto de la catedral de Sevilla, ilustração de Marià Fortuny, feita entre 1867 e 1872


Eventualmente o crocodilo apodreceu e caiu. Um de madeira foi colocado em seu lugar, e continua lá até hoje.
   


 É improvável que o rei Alfonso estivesse apenas continuando um costume do mundo Árabe (apesar da Catedral ter sido uma Mesquita antes do pai do rei Alfonso conquistar a região). O propósito do crocodilo, pelo menos pela explicação dada na catedral, é incorporar a virtude da prudência, e para espantar pombos.

 Eu não sei exatamente a relação entre as duas coisas. Talvez seja a prudência que ele inspire seja nos pombos... a de não se aproximarem de um crocodilo.

 Mas o crocodilo da Catedral de Castilha não é um caso isolado. Não é incomum encontrar crocodilos em igrejas.

Não, não crocodilos de madeira, esse é um caso isolado. Crocodilos reais mesmo.

Interior da Catedral de Saint-Bertrand-de-Comminges
Voltemos rapidamente a ficção. Mais especificamente, a história "Canon Alberic's Scrap Book", que é o primeiro conto da coleção "Ghost Stories of an Antiquary", de Montague Rhodes James.

 (se não conhece as histórias do M. R. James, procurem, são histórias de assombrações incríveis, e influenciaram diversos autores que vieram depois dele).

 A história em questão se passa na decadente catedral da pequena comuna de Saint-Bertrand-de-Comminges, que fica aos pés dos Pirinéus, no sul da Franca. Nela ele menciona, entre outros detalhes do lugar, a presença de um velho crocodilo empalhado.

A Catedral em questão é real, assim como o crocodilo empoeirado.

E a Espanha e a França não tem monopólio dos crocodilos em igrejas, de forma nenhuma. Existe, por exemplo, o do Santuario della Beata Vergine delle Grazie, em Mântua, que está lá, pendendo do teto, bem no centro da nave da igreja desde o século XVI.





“Já faz cem anos que ele foi descoberto nas fossas de Curtatone, onde causou muitos infortúnios. Certa manhã ele atacou de surpresa dois irmãos que caminhavam pela borda de uma vala. Ele matou um, e o outro, vendo que não conseguiria fugir, colocou-se sob o poder da Virgem, e com um machado que levava consigo, atacou e matou o animal, que foi embalsamado e pendurado onde se pode vê-lo hoje."
(Ippolito Donesmondi, Historia dell’origine, fondatione, et progressi del famosissimo tempio di S. Marie delle Gratie, in campagna di Curtatone fuori di Mantova, 1603.)



Essa é a lenda, mas é provável que ele tenha simplesmente vindo da coleção dos Gonzaga, que ainda tinham outros dois. Esse mesmo tipo de narrativa, com pequenas variações, é encontrada em quase toda igreja que tenha um crocodilo pendurado.


 O Santuário não é o único lugar em Mântua onde você pode encontrar um crocodilo pendurado. Tanto o Palazzo degli Studi quanto a Curia da cidade, possuem crocodilos. Fora da província, temos o da igreja de Santa Maria Dele Vergini, em Macerata, da Chiesa di San Giorgio, em Ragusa, e o do Santuario della Madonna delle Lacrime, em Ponte Nossa (Bergamo)

Crocodilo da  Igreja Santa Maria Dele Vergini, lá desde mais ou menos 1590
Crocodilo da Igreja de San Giorgio

O Crocodilo do Santuario della Madonna delle Lacrime. Ele está lá há mais de 500 anos

 Apesar de existir a possibilidade dos crocodilos também servirem como indicação que a igreja também administre artes curativas (os monges do Santuário della Beata Vergine della Grazie também mantinham um hospital), ou então que os sacerdotes residentes também eram estudiosos das filosofias naturais, esses crocodilos geralmente serviam como uma representação do ‘mal’ mantido sobre controle pelo poder da igreja. Agindo como substitutos para o dragão primordial, a serpente, ou o diabo. Um aviso para o mal se manter distante, tal qual era feito no Egito.
 
Coluna na Praça de São Marcos, em Veneza, com São Teodoro e o derrotado dragão que por algum motivo suspeito, é do exato tamanho de um crocodilo.

 É claro, que existem casos em que quase todos os significados podem se aplicar, como no caso do crocodilo empalhado no Gabinete de Curiosidades do polímata jesuíta Athanasius Kircher, o Museo Kircheriano.


O Museo Kircheriano no Colégio de Roma, 1679 (o crocodilo é visível no canto superior esquerdo)


 Independente do contexto exato do crocodilo empalhado, se ele está em um Gabinete de Curiosidades, igreja, loja de boticário, laboratório de alquimista, ou no estúdio de um pesquisador das artes místicas, sempre existem constantes sobre o seu significado.

E não apenas o fato de que ele serve para espantar pombos.


Gabinete de Curiosidades do Naturalista Francês Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon, no Buffon Museum, em Montbard


 De um modo mais metafórico, pode ser que as virtudes que a efígie de um crocodilo evoquem sejam as mesmas possuídas por um crocodilo vivo. Ele é poderoso, ele inspira terror. Ele é basicamente um fóssil vivo, tendo mudado muito pouco desde a época dos dinossauros. Manter um içado sobre sua cabeça pode muito bem representar uma espécie de poder sobre algo enigmático e antigo, ou um desafio, mostrando que o dono não se sente ameaçado pelos mistérios do universo e as ameaças de outras eras.

Além de criar uma ótima atmosfera como peça de decoração, 


  

 Eu ainda não tenho um jacaré pendurado no teto do meu quarto,  mas isso é só uma questão de tempo.

 Já tenho até o espaço reservado.



Um comentário:

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