quarta-feira, 12 de setembro de 2018

O Estranho Caso dos Dois Draculas


Drácula.

Senhor das terras que se estendem do passo Borgo, e do castelo que leva seu nome.
Soldado, estrategista, possível voivoda da Terra Além da Floresta.
Alquimista, feiticeiro de Scholomance, discípulo do próprio diabo.

O Rei dos Vampiros.

Personagem-título do romance de horror gótico que influenciou todos os vampiros da ficção após sua publicação em 1897, Drácula já apareceu e teve a sua história adaptada para diferentes mídias mais vezes que qualquer outro personagem do gênero, se tornando o arquétipo ocidental para a figura do vampiro clássico.


É uma figura inconfundível. E sua história, a do monstro inumano que se passa por cavalheiro, deixando as ruínas de seu castelo para se alimentar da vida de pulsa em um grande centro da civilização pode ser vista em inúmeras obras, seja no plano de Kurt Barlow em A Hora do Vampiro de Stephen King, ou no Vampiro Lestat, de Anne Rice, voltando a desfrutar do mundo em uma banda de rock após anos de letargia.

Sem nem entrar no assunto dos tons de ansiedade vitoriana colonialista, invasão e tensão étnica da obra original, podemos dizer que a marca de Drácula nos outros vampiros é algo muito mais visível que os prosaicos orifícios deixados no pescoço de suas vítimas.

E se eu dissesse, após tudo isso, que existe mais de um Drácula?
E não apenas isso. Que existe mais de um Drácula saído da pena do próprio Bram Stoker (mais ou menos).

Bem, é exatamente isso que estou dizendo.

Começo aqui o Dossiê do Estranho Caso dos Dois Dráculas.

Pedaços Perdidos



Entre o pesadelo com um Vampiro-Rei se erguendo do túmulo que Bram Stoker teve após uma jantar de caranguejos mal digerido, e a publicação da versão de Drácula que conhecemos, temos um longo período de tempo. Nesse período o autor irlandês pesquisou sobre o folclore Europeu e suas histórias de vampiros, ouviu sobre Abhartach, o tirano insular que bebia sangue, leu os escritos de Emily Gerard sobre as superstições da Transilvânia, se deparou com a figura histórica de Vlad III, O Empalador, que daria o nome ao seu personagem e livro (muito melhor que o inicial, e nem um pouco discreto “Conde Wampyr”), e presenciou o pânico da população da Nova Inglaterra, que assustados com os surtos de tuberculose que afetavam e matavam um a um membros de certas famílias, chegaram a conclusão que era tudo causado por vampiros, exumando e trespassando corpos com estacas, decapitando e queimando os cadáveres de entes queridos, e até consumindo seus corações na esperança de se livrar da maldição que acreditavam existir.

Em todo esse período, Bram Stoker trabalhou no manuscrito de seu livro, e obviamente as primeiras versões são consideravelmente diferentes do produto final. Diversos personagens presentes nas anotações originais para o livro não aparecem no romance, mas a indicação mais conhecida do material apócrifo de Dracula, está na conto “O Convidado de Drácula”, presente na coletânea “O Convidado de Drácula e Outras Histórias”, publicado pela primeira vez em 1914, dois anos após a morte de Stoker.

O livro contem nove histórias, mas que nos interessa aqui é a que dá o título ao volume.

O conto acompanha um viajante inglês (que em momento algum ouvimos o nome, mas provavelmente se trata de Jonathan Harker) em uma visita a Munique, antes de partir para encontrar alguém que o espera na Transilvânia. Apesar dos alertas dos locais para que não vá pra muito longe, ou retorne muito tarde, pois aquela é a Noite de Santa Valburga (Walpurgisnacht, que é quase um esquenta para o Halloween), o viajante deixa sua carruagem e anda rumo a uma vila abandonada, enquanto é observado por um estranho alto e magro (que muito provavelmente é o próprio Drácula).


Pego por uma nevasca, o viajante Inglês se refugia em um cemitério cercado por um bosque. Ali ele se depara com o mausoléu de mármore de uma certa “Condessa Dolingen de Gratz” que suicidou-se. Dentro da tumba, o viajante encontra a própria Condessa, não como um cadáver, mas apenas como se estivesse adormecida. Antes que possa investigar qualquer coisa, uma força misteriosa o puxa para fora da tumba, que é atingida por um raio e destruída completamente no exato momento em que a figura loura se levanta do mármore onde repousava. Ouvindo os gritos da Condessa, o viajante inglês perde a consciência, e ao acordar, se depara com um gigantesco lobo de olhos flamejantes deitado sobre o seu corpo e lambendo sua garganta. Quando cavaleiros chegam para resgatá-lo, afugentando a fera, eles constatam que o lobo (que mencionam ser "um lobo, mas que também não é um lobo"), apenas manteve seu corpo aquecido durante a noite fria.

Ao ser levado de volta ao hotel, o viajante encontra um telegrama do anfitrião que o espera na Transilvânia, Drácula, que o avisa sobre os “perigos da neve e dos lobos e da noite”.

Florence Balcombe, viúva de Bram Stoker
Retrato feito por Oscar Wilde... seu ex.
No prefácio da edição original do livro, a viúva de Stoker, Florence, menciona “À lista de histórias originais desse livro, eu adicionei um episódio inédito de Dracula. Ele foi originalmente cortado devido ao comprimento do livro, e pode ser de interesse aos leitores do que é considerado o trabalho mais notável de meu marido”.

 Nos anos 80, um dos manuscritos originais de Drácula foi encontrado em um celeiro da Pennsylvania. Com 541 páginas, o livro ainda mantinha o título “The Un-Dead” rabiscado na página de rosto (nome que só foi mudado algumas semanas antes da publicação), e era uma cópia que pertencia a Thomas Corwin Donaldson, um advogado americano que foi amigo pessoal de Stoker.

 Entre inúmeras pequenas diferenças desse manuscrito com a versão final do livro, está um trecho em que Jonathan Harker menciona que sua garganta “ainda está dolorida por conta da língua áspera do lobo”, uma referência clara ao trecho cortado do livro, que seria o primeiro capítulo. Além disso há um trecho em que, ao ser perseguido pelas três vampiras que habitam o castelo, Harker identifica a vampira loura que o tenta “beijar” como sendo a mesma mulher que ele havia visto na tumba em Walpurgisnacht.

 Curiosamente, a tal Condessa Dolingen de Gratz, é mencionada como proveniente da Styria, local onde se passa outra história... uma tão influente quanto Dracula na trajetória dos vampiros na ficção. É em um castelo da Styria onde se passa Carmilla, de Sheridan Le Fanu, publicado 26 anos antes do romance de Stoker. É possível que a presença da personagem tenha sido uma pequena homenagem a essa obra (ou então, uma declaração alegórica de que o seu novo vampiro estava tomando o lugar da criação de Le Fanu).

Marcilla ataca a adormecida Bertha, D. H. Friston (1872) mas minha primeira opção foi por uma imagem da Natasha Negovanlis

Uma outra mudança que essa versão anterior de Dracula tinha, era um novo final. Após o trecho do livro, nas ultimas páginas, que dizia “Agora o Castelo de Drácula parecia emergir do fundo de um céu ensanguentado” vinha o paragrafo abaixo:

Enquanto olhávamos veio um terrível tremor da terra, tanto que chegamos a perder o equilíbrio, caindo de joelhos. No mesmo instante, com um rugido que parecia sacudir o próprio firmamento, todo o castelo, as pedras, e até mesmo o pico em que se erguia pareceu levantar no ar e se desfazer em fragmentos, enquanto uma nuvem de fumaça negra e amarelenta se erguia com inconcebível rapidez.
A natureza parou enquanto os ecos daquele acontecimento estrondoso se esvaiam no estampido oco de um trovão - reverberando como se os alicerces dos céus tremessem. Então, da poderosa ruína que se desfazia vieram os fragmentos que o cataclista havia lançado para longe.
De onde estávamos o que parecia é que uma selvagem erupção vulcânica havia satisfeito um, desejo da natureza, afundando o castelo e toda a estrutura do pico no abismo. De tão chocados com a grandiosidade repentina do acontecido, esquecemos de pensar em nos mesmos.”



Esse trecho com a destruição do castelo foi tirado pelo próprio Bram Stoker, e não por seu editor, provavelmente para evitar comparações com o final de “A Queda da Casa de Usher”, de Edgar Allan Poe.

A existência das versões anteriores de Dracula também tem confirmação em outro lugar peculiar. Em diferentes cartas à diferentes pessoas, H.P. Lovecraft menciona que sua amiga, a jornalista Edith Dowe Miniter, teve oportunidade de revisar um manuscrito preliminar de Dracula, que ela considerou extremamente desleixado, cobrando mais pelo serviço do que Stoker estava disposto a pagar. Essa Edith Miniter havia sido a mesma que publicara uma critica extremamente negativa sobre a passagem de Sir Henry Irving e sua trupe teatral pelos Estados Unidos, em 1894. Passagem essa em que Bram Stoker ocupava o papel de contato de imprensa.

Por fim, em 26 de Maio de 1897, Dracula foi publicado na Inglaterra pela Archibald Constable and Company, e por seis xelins, você poderia comprar a edição original, com sua capa amarela e título em vermelho.

 O livro recebeu críticas positivas na maioria dos jornais da época, e foi então traduzido e publicado em muitos outros países depois disso, incluindo a Islândia, Suécia, Hungria, e Estados Unidos.

E é aqui que a história se complica.


Um Achado Peculiar



Em 1986 o pesquisador Richard Dalby escreveu sobre o prefácio da edição islandesa de Dracula. Lançada com o título Makt Myrkranna (Poderes das Trevas), a tradução foi publicada em 1901, e o prefácio em questão, escrito pelo próprio Bram Stoker, apresenta mudanças intrigantes; como uma ênfase extra sobre a veracidade da narrativa apresentada, e menções crimes britânicos que não estão presentes na edição Inglesa original. O prefácio especial de Makt Myrkranna permaneceu apenas como uma curiosidade por décadas.

Entra em cena o holandês Hans Corneel de Roos.

No fim de 2013, De Roos, que é historiador e pesquisador da obra de Bram Stoker resolveu completar um estudo prévio sobre a ideia plantada pelo autor de que os relatos sobrenaturais do livro seriam verídicos.

Por razões que não posso explicar muito bem – provavelmente enraizadas em traumas de infância e uma falta de confiança em verdades estabelecidas – eu pensei que seria uma boa ideia comparar a tradução de Dalby do prefácio com o texto Islandês original. Uma cópia em facsimile dele havia sido publicada em 1993 no The Bram Stoker Journal, junto ao artigo de Dalby, mas, novamente por razões que eludem a mente racional, eu quis voltar a fonte e achar eu mesmo uma cópia da edição de 1901. Eu escrevi para várias istituições em Reykjavík e tive sorte de entrar em contato com Katrín Guðmundsdóttir e Einar Björn Magnússonn, da Biblioteca Municipal de Reykjavík, que educadamente me mandaram um scan novo do prefácio de sua cópia de Makt Myrkranna.”

Já era o início de 2014 quando De Roos começou a transcrever a cópia da biblioteca, e a traduzí-lo, comparando com a tradução de Dalby. Foi quando, ao buscar certo trecho do prefácio na barra de busca do Google, ele se deparou com um outro scan do prefácio em um site da internet, mas não do livro, e sim de uma serialização da história em um jornal Islandês, datada de um ano antes da publicação oficial de Makt Myrkranna.


A serialização de Dracula no jornal Islandês Fjallkonan não foi a primeira. O livro foi publicado nesse formato no jornal norte-americano Charlotte Daily Observer em 1899, e no jornal hungaro Budapesti Hírlap em 1898 (provavelmente a primeira tradução da obra para outro idioma). Mas essas são descobertas recentes, e não tornam as serializações da obra em jornal menos raras. De Roos conseguiu encontrar, no mesmo site em que descobriu o prefácio, todas as edições seguintes do jornal em questão, conseguindo uma transcrição completa de todos os episódios de Makt Myrkanna.

Acontece que o livro que ele encontrou era completamente diferente do Dracula que nós conhecemos.


Poderes das Trevas:  Dracula Director's Cut Redux



Makt Myrkranna é menor que Dracula, mas a primeira parte do livro, com Harker no castelo do Conde, é consideravelmente maior que a da publicação original. A segunda parte do livro é quase que uma versão resumida do resto da história, tudo se resolve em cerca de 40 páginas de narrativa truncada. Além de ultra condensada, ela subitamente deixa o característico estilo epistolar. Certos personagens, como Renfield, sequer aparecem, e quatro páginas após Van Helsing ter explicado como se mata um vampiro para que combatam o Conde, Drácula já está morto, em uma sequência de poucos parágrafos. É quase como se o tradutor islandês, Valdimar Ásmundsson, estivesse com pressa de terminar o trabalho para que a história pudesse ser publicada no jornal.

Valdimar Ásmundsson,
que parecia o Lovecraft usando um bigode falso.
Mas como explicar as outras mudanças da história?
E acreditem, são muitas (darei detalhes dessas diferenças mais adiante, esperem um pouco).

Uma teoria é que, como Bram Stoker teve de mudar muito do livro para que fosse publicado por Archibald Constable & Co., ele viu na tradução do livro uma oportunidade de lançar uma versão mais completa e sem censura de sua história. Entretanto, Stoker era notoriamente pudico (mesmo tendo morrido de sífilis), e pró-censura, e o teor erótico presente em Poderes das Trevas (sim, isso mesmo, esperem um pouco que dou mais detalhes) colocam essa teoria em cheque.

Por outro lado diversos pontos da trama de Makt Myrkranna que não estão em Dracula estão presentes nas anotações originais de Bram Stoker para a história. Personagens tem nomes de conhecidos do autor em sua vida pessoal, e existem referências a acontecimentos, como os Esquartejamentos do Rio Tâmisa (ocorridos um ano antes dos crimes de Jack o Estripador, e cobertos pela imprensa Londrina, mas totalmente desconhecidos na Islândia), que nem Ásmundsson, que nunca viajara para fora de seu país, nem o leitor Islandês da época tinham como conhecer. É possível que as mudanças na história não tenham sido feitas apenas pelo tradutor sem consentimento de Bram Stoker, afinal, ele próprio escreveu um novo prefácio para ela..

O que tivemos aqui foi provavelmente um processo de co-autoria. Uma versão nova de Dracula criada em conjunto a partir de uma versão anterior do livro.

Então, graças a curiosidade e o trabalho de tradução de Hans Corneel De Roos, uma edição em inglês de Makt Myrkranna foi compilada e lançada pela Overlook Press.
Powers of Darkness: The Lost Version of Dracula” de Bram Stoker & Valdimar Ásmundsson chegou nas livrarias em Janeiro de 2017, com um prefácio escrito por Dacre Stoker e diversas notas sobre as diferenças e processo de tradução, deixando o mundo literário mais do que surpreso, tanto por sua existência, quanto por ter permanecido desconhecido pelo resto do mundo por mais de cem anos.


Mas a história não terminou aí...


Poderes das Trevas:  Dracula Director's Cut Versão 1.0


Entra na história o pesquisador literário sueco Rickard Berghorn.

Ao ler sobre o lançamento de Makt Myrkranna, Berghorn se lembrou que a tradução sueca de Dracula tinha um nome similar com o mesmo significado, Mörkrets Makter, e ao buscar na Biblioteca Nacional Sueca, descobriu que a obra também havia sido serializada em jornais, nas publicações Dagen e Aftonbladets Halkfvecko-Upplaga, datando de 1899, um ano antes da serialização de Makt Myrkranna.
Götebrogs Aftonbladet, 25 de setembro de 1899, oferecendo uma reedição de Mökrets Makter

Agora vem a melhor parte: Mörkrets Makter, a versão Suéca de Poderes das Trevas, tem quase o dobro do tamanho de Dracula!

A versão é identica a Makt Myrkranna até o fim da primeira parte, com Harker fugindo do castelo. Na serialização em Aftonbladet, ela começa a apresentar a narrativa resumida a partir desse ponto, sem estar em estilo epistolar, embora Renfield ainda esteja presente, o que nos leva a conclusão que a versão Islandesa foi ainda mais resumida por Ásmundsson a partir da publicada em Aftonbladet (De fato, pesquisadores literários Islandeses suspeitavam há muito tempo que Makt Myrkranna não fosse um texto original escrito em Islandês, mas a tradução de uma versão escandinava anterior).

Mas na versão publicada o periódico Dagen a história cresce, muito. Ela tem até ilustrações (não muito boas, é verdade) e foi publicada mais uma vez, anos depois, em uma revista barata chamada Tip-Top, com a apresentação “Romance de Bram Stoker. Adaptação Sueca para Tip-Top por A-e”. A ligação com Bram Stoker, ao que parece, não era com Valdimar Ásmundsson, da tradução Islandesa, e sim com o misterioso A-e da versão Sueca, que até o momento, ninguém tem nenhum indício concreto de quem seria, mas que é, de fato, a figura que teria trabalhado com Bram Stoker (ou com seu consentimento) para a criação do livro.

O que é surpreendente é que diferente da versão serializada na Islândia, que era obscura fora do país e ninguém havia pensado em ler por completo (com exceção do prefácio) para ver se haviam diferenças, a versão Sueca não era desconhecida no mundo literário... e mesmo assim, ninguém também havia pensado em ler para ver se havia alguma diferença!

Pelo menos até lerem sobre a tradução de Makt Myrkranna.

"Ninguém previu isso. Nem meus colegas de pesquisa ou meu editor, ou minha amiga Simone Berni, da Itália, que é uma especialista nas primeiras traduções de Dracula [...] eu passei três anos tentando encontrar uma conexão entre Valdimar Ásmundsson e Bram Stoker. Um contato direto assim explicaria como elementos das notas de Bram para Dracula que nunca foram publicadas no livro de 1897 foram parar em Makt Myrkranna. Agora parece que devemos começar é a procurar por uma ligação entre Stoker e Harald Sohlman, o Editor-Chefe da Dagen e Aftonbladet."


"É um pouco irônico. Tanto esforço acadêmico e pesquisa foram aplicados em um texto Islandês que é apenas um pálido resumo de uma versão já resumida, baseada no texto original publicado no jornal Dagen perto da virada do século. Não teria sido muito difícil achar o texto sueco original, se tivessem feito consultas online nas Bibliotecas Nacionais Escandinavas e procurado em seus arquivos"

Uma pequena editora Suéca chamada Aleph Bokförlag publicou o texto integral de Mökrets Makter em Outubro de 2017.



Certo, eu falei isso tudo, dei uma mini-aula sobre publicações serializadas de Dracula, mas resta a questão, quais são essas mudanças tão drásticas que tornam Poderes das Trevas um livro diferente?

Se preparem que é aqui que o negócio fica doido.


Baladas em Carfax, Macacos-Vampiros e Jóias Hipnóticas



A primeira coisa que tenho de dizer é que Poderes das Trevas não enrola. Diferente das longas discussões morais, filosóficas, ou declarações de apreço que os personagens de Dracula tem, Poderes das Trevas tem a tendência de avançar rápido, como em uma história pulp, onde cada trecho empurra o enredo para frente.

É claro, isso é uma diferença de estilo. Mas e a história em si?

Bem, podemos ilustrar isso na estadia de Jonathan Harker no castelo de Dracula...ahem, digo, a estadia de Thomas Harker no castelo de Draculitz.

Sim, Poderes das Trevas muda certos nomes. Mina e Lucy, se tornam Wilma e Lucia, por exemplo.

Em toda a seção em que se passa no castelo, Dracula parece estar jogando um jogo de gato e rato com Harker, posando de cosmopolita, mencionando seu apreço pelas histórias de Arthur Conan Doyle, para em seguida chocar suas sensibilidades vitorianas com discussões abertas sobre assuntos sexuais, coleção de gravuras eróticas, e mencionando ter passado meses torturando a esposa e seu amante, em seus “dias de marido ciumento”




Ah, sim, o Conde é aparentemente casado com sua própria prima (ou tia, ou sobrinha... a palavra usada para as três é a mesma no idioma em que o livro foi escrito), além de ter uma filha. Segundo ele, todas as linhas sanguíneas de seu clã, cujos retratos adornam as paredes do castelo, são puras. Isso se dá, é claro, através das velhas práticas incestuosas da nobreza.
Aliás, Átila continua sendo aludido como um ancestral de Drácula, e ele e seus Hunos teriam ganhado poder se relacionando com demônios e bruxas na floresta. Além disso, sua linhagem teria membros secretos por todas as casas nobres mais importantes da Europa.

Mas deixe-me falar um pouco da figura da Condessa, esposa de Drácula.

Em Dracula existem as três vampiras que atormentam Harker durante sua estadia no castelo. Aqui, apesar de não ser a única mulher presente, pois o Conde também tem uma criada surda e muda (saída diretamente das anotações de Bram Stoker), é dado um destaque maior a principal das “noivas de Drácula”. Essa, por sua vez, é ninguém menos que a mesma figura loura mencionada em “O Convidado de Drácula”.


Em determinado ponto Drácula explica que essa sua parente em questão é mentalmente instável (Drácula, Rei dos Vampiros e do Gaslighting), e que as vezes pensa ser sua própria tataravó, inclusive mostrando um retrato que confirma a semelhança de ambas.

A Condessa, reclamando de sua imensa solidão, tenta seduzir Harker todas as noites em seu quarto, e ao contrário da luxúria de sangue clara das três vampiras em Dracula, em Poderes das Trevas seus métodos de atraí-lo e corrompê-lo se focam em outro tipo de luxúria. Isso fica claro até no tipo de prosa usada.

Vamos comparar um trecho específico de Dracula, com sua versão correspondente em Poderes das Trevas.

Em Dracula:
A mulher loura caiu de joelhos e se curvou sobre mim num êxtase de enternecimento. Havia uma deliberada volúpia nela que era tanto arrebatadora quanto repulsiva, e conforme arqueava seu pescoço, ela chegou a lamber os lábios feito um animal, até eu poder ver a umidade brilhando em seus lábios e língua escarlates enquanto passavam pelos dentes brancos e afiados.”

Em Poderes das Trevas:
E então, dois grandes clarões fulgurantes se seguiram, iluminando tudo com uma brilhante e elétrica luz. E neste brilho ela estava subitamente a minha frente -, muito perto --- estonteante – como uma chama branca, com o mesmo sorriso tentador e enigmático de quando eu vi pela primeira vez as chamas azuis de seus olhos, penetrando minha mente e fazendo que minha energia e força de vontade derretessem feito cera-de-abelha. Eu a vi assim por alguns segundos apenas, esguia, mas voluptuosa contra a luz baça do quarto – e então tudo ficou escuro [...]

Mais uma vez o silencioso brilho chamejante lampejou, fantasmagórico e aliegínea – me revelou seu rosto adorável perto do meu, se curvando sobre mim, seus olhos fixos nos meus; os lábios vermelhos semi-abertos, voluptuosos de desejo, a jóia sobre seu seio branco nu brilhava; eu vi como ela caiu de joelhos, perto de onde eu me deitava; no momento seguinte tudo era escuro novamente, e em um estado de torpor estonteante, eu senti como se estivesse afundando em um abismo […] – – senti seu hálito sobre meu rosto, morno e intoxicante – – senti um par de lábios entumescidos se pressionarem contra o meu pescoço em um longo beijo ardente que fez minha própria essência tremer com o êxtase de desejo e angústia – E em um transe descontrolado eu enlacei a bela aparição em meus braços – –”

Embora Harker (supostamente) se esforce para resistir aos avanços da Condessa, não há tantos sinais da repulsa como os que ele demonstra em Dracula. Ele chega a mencionar que ela igualmente o assusta e o atrai. E mesmo com o Conde sempre interrompendo esses encontros, Harker ainda é acometido por “febres” devido as “estranhas paixões” provocadas por sua visitante.
Ingrid Pitt em Countess Dracula, 1971

Harker eventualmente percebe que é um prisioneiro no castelo, e ao explorá-lo, ao invés de encontrar caixas de terra, o que ele encontra ao explorar essa versão mais labiríntica da morada de Dracula, é uma orgia satânica promovida pelo Conde em sua longa capa vermelha.
Uma Missa Negra em um templo decorado com chamas, com direito a narrativa lúrida descrevendo camponesas acorrentadas e de vestes rasgadas que são sacrificadas por um séquito de adoradores (e olha, não é a primeira nem a ultima combinação de nudez e sangue que rola no livro).

Ah, e esses adoradores de Drácula? Híbridos vampíricos animalescos, criaturas meio primatas meio humanas que habitam as cavernas cavadas sob o próprio castelo.
Ilustração da serialização da Dagen, 1899

Eu disse que as coisas iam ficar malucas.

E enquanto o Conde em Dracula deixa seu lar por ter exaurido a região do que precisa para sobreviver, partindo para Londres, o centro da civilização, para ter um novo campo de caça, em Poderes das Trevas suas ambições são maiores.

O objetivo de Drácula em Poderes das Trevas, é a conquista.
"O meu objetivo... é a conquista!"

 O Conde, que aqui tem o costume de mandar cartas para políticos e figuras europeias famosas (provavelmente usando mesóclise e citações em latim), todas financiadas por ele para dar cabo de suas conspirações de dominação dos vivos, a propagação do vampirismo, e a de seus rituais de magia negra e sacrifícios humanos.

Em suas conversas com Harker, o Conde, ostentando divisas militares nas vestes, chega a citar Darwinismo Social como justificativa de seu direito de nascença de esmagar as pessoas comuns sob suas botas, e que os vampiros são um novo patamar na evolução da humanidade. Em determinado ponto ele diz:

os mais fortes devem pravelecer e conquistar o mundo. Aqueles que são fracos foram criados apenas para satisfazer as necessidades dos mais poderosos. A pessoa que sabe como peceber sua força ganhará supremacia e terá tudo sob o seu comando – beleza, prudência, e conhecimento”

E enquanto em Dracula o Conde parte sozinho para a Inglaterra, se passando por humano apenas brevemente para adquirir propriedades, em Poderes das Trevas Dracula se torna parte da alta sociedade. Assumindo a identidade de “Barão Székely”, ele visita cordialmente Wilma (Mina) e Lucia (Lucy), seduzindo a última e lhe dando conselhos sobre seus dons mediúnicos latentes (!).

O futuro casamento de Lucy com Holmwood inclusive, fica a perigo, por conta da obsessão dela pelo misterioso Barão.

O Drácula de Poderes das Trevas é tão social que até mesmo dá grandes festas em Carfax, sua mansão (que aqui não é uma ruina, e sequer fica no mesmo endereço), para onde convida diplomatas estrangeiros ricos e poderosos, que planejam derrubar a democracia e instituir suas leis sanguinárias em uma 'nova ordem mundial'. 
 Além disso, o Conde traz todo um séquito de vampiros aristocratas decadentes com ele para ajudar em seus planos de engenharia social. Entre os novos personagens vampíricos que frequentam as festas de Carfax estão o Principe Koromesz, infame embaixador Austríaco em Londres, a Condessa Ida Varkony, irmã de Koromesz, o médium Margravine Caroma Rubiano, e Madame Saint Amand, uma donzela de muitos amantes.

Drácula, Party Guy.




Uma outra diferença em Poderes das Trevas é o destino de certos personagens.

O de Lucy, após ter seu sangue exaurido por Drácula e retornar do túmulo é incerto. Holmwood deixa seu caixão aberto com uma muda de roupas dentro, mas nada mais é mencionado sobre o assunto (já a mãe de Lucy e sua empregada tem um fim mais definitivo, sendo encontradas com a garganta aberta na mesma noite em que Lucy recebe suas derradeiras transfusões de sangue).
Isso não acontece no livro.

Por seu sanatório ser exatamente ao lado de Carfax, o pobre Dr. Seward acaba tratando os supostos distúrbios do sono da bela Condessa Ida Gonobitz-Vàrkony, que começa a hipnotizá-lo. Seward acaba retornando várias noites a Carfax, frequentando suas festas, e o misterioso e intimo “quarto vermelho” da mansão, e lentamente perdendo o controle de seu estado mental, culminando na perda total de sua sanidade e no incêndio do sanatório.

Mina é atacada por uma mulher fantasmagórica ao buscar Harker na Transilvânia, e ambos acabam convalescendo no mesmo convento. Após se casarem, Mina leva Harker, que não se lembrados acontecimentos no castelo, para se consultar com um famoso neurologista em Vienna, e determinar se um dia ele irá se recuperar do trauma.
"Meu teorria é que essa Drácula possui uma transtorno oral vindo de trrauma envolvendo seu mãe"

Quincy Morris sobrevive, mas é incriminado e vai a julgamento pelo assassinato do Conde.

Além disso temos inúmeros personagens novos, como o tio de Lucy, a irmã de Arthur Holmwood, que se casa com o assistente romeno do Príncipe Koromesz, os policiais Edward Tellet e Barrington Jones, provavelmente evoluções do Detetive Cotford, mencionado nas anotações originais, que investigam os crimes de Drácula (chegando até a incriminar Harker por engano), e certos personagens que sobrevivem em Dracula, morrem em Poderes das Trevas, e vice e versa.

O livro possui também um grande pessimismo de fim de século, particularmente no que se refere á política internacional e o estado de tensão dos países, como reflete o Dr. Seward ao ler o jornal em certo trecho:

A seção internacional do jornal anuncia sobre várias notícias estranhas – comportamento lunático e revoltas violentas organizadas por anti-Semitas, na Russa, Galicia e também no sul da França – lojas saqueadas, pessoas massacradas – insegurança de vida e propriedade – e as mais fantasiosas narrativas inventadas sobre “assassinatos rituais”, crianças sequestradas e outros crimes hediondos, todos atribuídos de forma criminosa aos pobres Judeus, enquanto jornais influentes instigam uma guerra de exterminação geral contra os “Israelitas”. É de se pensar que esse é o meio da Idade das Trevas! […] Agora, mas uma vez, parece que a chamada “Conspiração de Orleans” está sendo investigada – enquanto ao mesmo tempo os Republicanos livres na França celebram com exaltação os expoentes de escravidão e despotismo do Leste […] São tempos estranhos esses em que vivemos, isso é a verdade. – – – As vezes me parece que todas as fantasias insanas, todos ideias loucas, todo o mundo de inconstância e noções fragmentadas em que eu, como médico de sanatório, fui forçado a adentrar por anos ao cuidar de meus pobres pacientes, agora começam a se formar e serem praticadas no curso dos eventos mundiais”


Prevendo Tendências


 Outra coisa curiosa de Poderes das Trevas é que a derrota do Conde se dá na Inglaterra, com Van Helsing atravessando seu coração com uma adaga ainda em Carfax (que é destruída, tal qual o castelo, no final omitido de Dracula). A omissão da perseguição pelos Cárpatos e substituição por um final mais rápido e local é algo que seria feito repetidamente nas adaptações de Drácula no teatro e cinema. De fato, a peça teatral de 1924 que deu origem a adaptação cinematográfica com Bela Lugosi, seguia por um caminho muito parecido, com o Conde se passando por um aristocrata mais abertamente social, e sendo destruído em seu próprio refúgio em Londres. Isso levanta a dúvida de que versão exatamente foi usada por Hamilton Deane para a adaptação da obra.
Dorothy Peterson e Bela Lugosi na peça de Hamilton Deane, 1927

 Um outro elemento presente em diversos filmes (os da Hammer, principalmente, mas que já dava as caras nos da Universal), é um anel pertencente a Drácula com um papel importante. Em Poderes das Trevas, existem jóias com propriedades hipnóticas usadas pelos vampiros.

Em suas anotações originais, Stoker menciona Lucy achando um misterioso broche na praia de Whitby, vindo do naufrágio do Demeter, o navio que traz Drácula à Inglaterra. A joia, volta a aparecer quando Lucy é atacada no cemitério, durante um de seus episódios sonâmbulos. Em Poderes das Trevas ela é influenciada pelo broche de brilhantes ao encontrar os ciganos que servem Drácula. O mesmo tipo de joia é usada pela Condessa Vàrkony ao dominar Seward, e pela figura loura que seduz Harker no castelo. Em determinado ponto, Drácula dá a Harker um anel de rubi que possui o mesmo brilho sugestivo das demais jóias.
Os sugestivos e hipnóticos anéis de Drácula em House of Frankenstein, Dracula AD 1972, e Dracula's Daughter
  E é claro existe a vestimenta mais característica que Drácula usa em Poderes das Trevas, seus trajes rituais: uma longa capa vermelha.



"Denn Die Todten Reiten Schnell"



 A existência de Poderes das Trevas é um soluço de continuidade que geralmente não vemos acontecer na vida real.  É quase como ver duas espécies distintas que vem de um ancestral em comum. Ler Poderes das Trevas causa uma certa estranheza, e o resultado é similar ao efeito quando dormimos ao assistir um filme, e as falas do filme são encorporadas em nossos sonhos em contextos diferentes (no caso, você dormiu assistindo Dracula, mas o filme acabou e começou alguma outra história depois, envolvendo homens das cavernas, conspirações internacionais, proto-fascistas e bailes vitorianos).

 Por mais de um século Dracula tem sido adaptado e re-adaptado para diferentes mídias, em versões boas (como a do Francis Ford Coppola), em versões que tomam uma vida própria (Universal e Hammer Films), versões risíveis, medíocres e que provavelmente forma uma má ideia, ou uma ideia decente mal executada (Dracula 2000, Dracula Untold, a série do Dracula da NBC), gerou jogos (Castlevania), quadrinhos (Tomb of Dracula), animações (Hotel Transylvania) além de inúmeros spinoffs, pastiches, homenagens, e versões alternativas, como os livros The Dracula Tape, de Fred Saberhagen, que envolve o velho Conde dando a sua versão dos acontecimentos via suas memórias em um gravador (uma ano antes de Entrevista com o Vampiro), The Diares of the Family Dracul, de Janne Kalogridis, que são exatamente o que o título diz, Chidren of the Night, de Dan Simmons, que traz uma história na Romênia pós-comunismo envolvendo a linhagem de Drácula, e o meu favorito, a série Anno Dracula, de Kim Newman, que parte da premissa que os planos de Drácula na Inglaterra foram bem sucedidos, com ele se tornando príncipe-consorte, e introduzindo abertamente o vampirismo ao mundo, e todas as consequências disso em um mundo onde todos os vampiros da ficção co-existem (o meu livro favorito é o terceiro da série "Dracula Cha Cha Cha").

 E é claro, além de tudo isso, o livro em si nunca deixou de ser reeditado (estou de olho naquela edição da Darkside Books que é igual a edição original de capa amarela).


 E como "os mortos viajam céleres", não demorou para que decidissem adaptar a versão perdida de Drácula para outra mídia. O produtor Sigurjón Sighvatsson, da Scanbox, anunciou estar trabalhando com o premiado roteirista islandês Otto Geir Borg em uma série de TV baseada em Poderes das Trevas.

 Aparentemente, a série de 10 episódios intitulada "Dracula Now" vai se focar no lado político da história, trazendo os acontecimentos do livro para os dias atuais, e com Drácula sendo um manipulador tirânico megalomaníaco com planos de dominar a Europa.

 "'Dracula Now' vai ser uma alegoria do que está acontecendo hoje nos Estados Unidos, Reino Unido e França. Não será como um spinoff de Dracula porque não há necessidade disso. 'Dracula Now' vai explorar a ideia de Drácula como um ditador forjando um reino de sangue para controlar as pessoas no mundo atual."
 [Sigurjón Sighvatsson, para a Variety]


Além dessa, temos uma nova adaptação (do Drácula clássico dessa vez) sendo produzida pela BBC que será lançada em um futuro próximo.

Não vou falar da franquia Dark Universe porque essa já está morta-viva há um bom tempo, e suspeito que não vai conseguir se erguer do túmulo não.

Drácula, seja o Conde ou o livro, tem uma maneira de sempre retornar. Quer seja voltando inexplicavelmente do além-túmulo após ser decapitado, com uma gota de sangue pingando em um monte de cinzas em uma ruína ancestral, ou na descoberta de uma versão alternativa de si próprio. Talvez a capacidade de Drácula de se reinventar, algo essencial em um vampiro imortal, seja o que continua a manter sua relevância viva, ou morta-viva, por tanto tempo.

E com esse pensamento, eu fico por aqui. E a vocês eu digo como disse o próprio Conde:

"Vá á salvo, e deixe aqui algo da felicidade que trouxe consigo"





terça-feira, 12 de junho de 2018

As Sereias Silenciosas



 Eu nunca gostei muito de “A Pequena Sereia”. Algo no rumo e conclusão da história sempre me incomodaram. É claro que esperar algo que não seja deprimente em um conto do Hans Christian Andersen é o mesmo que encontrar um pacote com as palavras “pombo morto” escritas em sua geladeira, abrir, e esperar encontrar algo diferente.

 A sereia do Andersen sempre me pareceu... errada. Ela não tinha as características que eu esperava de uma sereia, talvez devido a infusão de melancolia e dos valores da época em que a história foi escrita. Ela não era ameaçadora. Na primeira oportunidade que teve, jogou seu punhal encantado no mar, desperdiçando uma oportunidade que as devoradoras de marinheiros das lendas antigas nunca iriam ignorar. O fato é que o que a Pequena Sereia era pode ser definido como é “sucessivamente trágica”. Ela perde coisas, ao invés de toma-las. Ela perde a língua, perde a voz, dança enquanto sente que anda sobre vidro e facas, perde o amor de sua vida, a chance de ganhar sua alma, morre, e por fim se torna espuma.


"I know what you want' said the sea witch",ilustração de Harry Clarke. 1910

 Acho que o que me incomodava mais era que a sereia da história não era misteriosa (exceto pelo fato de se tornar muda e não poder revelar sua identidade ao príncipe parvo que ela salvou). As histórias sobre sereias e similares sempre tinham uma boa quantidade de mistério incluído. Detalhes que não eram especificados. Espaços para a imaginação teorizar possibilidades terríveis. E como boa parte dessas histórias eram relatos folclóricos, passados adiante como ‘verídicos’ (pelo menos de acordo com quem os contava), tudo se tornava ainda mais intrigante.

Qual será que era o fundo de verdade por trás de cada mito? Algum deles deve ter algum, já que existem tantos assim, em tantos lugares, e há tanto tempo.

Ainda no primeiro milênio, havia Atargatis (que Ctesias chamou de Derketo), divindade Assíria com cauda de peixe cuja imagem pode ser encontrada em peças de arte a partir da primeira dinastia Babilônica.


Ilustração de Atargatis em Œdipus Ægyptiacus de Athanasius Kircher 
Nas ilhas Britânicas temos os Merrows, meio gente, meio peixe, cujos homens são horrendos e causam tempestades, o Murdúchann, que atrai os marinheiros para túmulos aquáticos com seu canto, tal qual as Sirenes Homéricas, e a Ceasg, a que vive em rios, e é parte salmão. Na Finlândia temos o Vetehinen, que se apresenta na forma de um velho barbado com cauda de peixe, no Chile, o Pincoy, com seu seu rosto de homem, cabelos dourados e corpo de leão marinho, o Ningyo, do Japão, presságio de desastres e cuja carne concede vida eterna, e o Ipupiara do Brasíl, com seus bigodes sedosos e abraço mortal.


Merrow. Alan Lee 1978

 Relatos são uma coisa que não faltam ao decorrer dos séculos. Plínio, o Velho, em sua Naturalis Historia (basicamente a primeira enciclopédia), ainda no século I, descreve vários avistamentos de sereias na costa da Gália, mencionando seus corpos cobertos de escamas, e que cadáveres delas frequentemente apareciam nas praias, fato que o governador da Gália chegou até a salientar em uma carta ao Imperador Augusto.


Ilustração da sereia em Naturalis Historia. Edição alemã de 1565
(nada a ver com o assunto, mas Plínio, o Velho foi uma figura fascinante. A obra dele cobre desde astronomia, até horticultura, passando por geografia, zoologia, pintura, matemática, mineralogia, farmácia, e muitas outras coisas. E também descreve tribos humanas como os Cynocephali, que tinha cabeça de cachorro, os Hippopodes, que tinham cascos de cavalo, e os Sciapodae, que tinha apenas um pé gigante, os Panotioi que tinham orelhas que cobriam o corpo todo, e os Astomi, que não tinham boca e viviam de cheiros. Ele morreu quando o Monte Vesúvio entrou em erupção, porque ele se recusou a sair de onde estava, a trinta quilômetros de Pompéia, antes de terminar a refeição que estava fazendo)

Nos diários de Cristovão Colombo, temos esta passagem:
“No dia prévio [ 8 de Janeiro de 1493], quando o Almirante foi até o Rio del Oro, ele disse ter avistado claramente três sereias que saíam do mar; mas elas não eram tão belas quanto as pintam, pois suas caras possuíam traços masculinos. O Almirante disse que ele já as havia visto outras vezes, na costa da Guiné, onde se acha tudo o que é curioso”


Colombo avistando "sereias", por Theodore de Bry 1594
O fato dele dizer que elas não eram tão bonitas é provavelmente porque eram peixes-boi, mas o detalhe de ainda insistirem que eram sereias, é porque os marinheiros estavam a meses em alto mar nessa situação:


 "We might see some octopuses (no dames) or a half a dozen clams (no dames) we might even see a mermaid... but mermaids got no gams!"

Em uma crônica publicada em 1575, Pero de Magalhães Gândavo conta da aparição de um Ipupiara em uma praia de São Vicente, em 1564, assassinando o índio Andirá, e aterrorizando sua amante Irecê, que fugiu apavorada, julgado a aparição do monstro um castigo. Em sua fuga, Irecê encontra o capitão Baltasar Ferreira, representante em São Vicente do capitão-mor Pedro Ferras Barreto, de Santos, e ele enfrenta e abate a criatura a golpes de espada. Segundo Gândavo, o Ipupiara tinha “quinze palmos de comprido” e era “semeado de cabelos pelo corpo e no focinho tinha umas sedas mui grandes como bigodes”.


No século XVI, em sua obra Viagem À Terra do Brasil, Jean de Léry relata uma história que ouviu dos índios Tupinambás da Guanabara:
 “...não quero omitir a narração que ouvi de um deles de um episódio de pesca. Disse-me ele que, estando certa vez com outros em uma de suas canoas de pau, por tempo calmo em alto mar, surgiu um grande peixe que segurou a embarcação com as garras procurando virá-la ou meter-se dentro dela. Vendo isso, continuou o selvagem, decepei-lhe a mão com uma foice e a mão caiu dentro do barco e vimos que tinha cinco dedos como a de um homem. E o monstro, excitado pela dor pôs a cabeça fora d'água e a cabeça que era de forma humana, soltou um pequeno gemido (...)”

Estátua do Ipupiara em São Vincente. Infelizmente ela foi incendiada por vândalos alguns anos atrás.

Em 1610, Henry Hudson registrou ter visto uma sereia perto da costa da Groelândia:

 “Um de nosso grupo, ao observar além do barco, viu uma sereia, e ao chamar mais da tripulação para vê-la, mais uma apareceu, e logo estava perto da lateral do navio, observando os homens. Pouco depois uma onda veio e a cobriu. Suas costas e peito eram como os de uma mulher, se corpo tão grande quanto os de um de nós, sua pele muito branca e com cabelos negros e longos que a seguiam. Quando ela submergiu vimos sua cauda, era como a de um boto, e pintada como uma cavalinha.”


"Um mui estranho e verdadeiro relato de um peixe monstruoso" ilustração da narrativa de um avistamento de sereia em 1604

 É claro que esses são relatos escritos. E quanto a algo material? É possível que em tanto tempo, ninguém nunca conseguiu nada físico relacionado a sereias?

No século XVII, a Arca de Tradescant, Gabinete de Curiosidades de John Tradescant, o Velho, hoje parte do Ashmolean Museum, supostamente possuía entre seus itens, a mão de uma sereia.

Ok, essa não é a mão de sereia da Arca de Tradescant, é a mão fossilizada do Monstro da Lagoa Negra.

E no início do século passado, você podia pagar marinheiros do Yemen para tirar fotos com legítimas sereias... que na verdade eram dugongos. Eles eram capturados e secados ao sol, com a cabeça amarrada para que diminuísse conforme iam desidratando.


Dugongos e Peixes-Boi são animais que tem sido associados a lendas de sereias há muito tempo, mesmo antes do engano de Colombo. E em 1959, a pintura de um dugongo de 3.000 anos foi descoberta em uma caverna na Malásia, com a inscrição "dama do mar", e na costa ocidental da África, Mami-Wata, o nome de uma divindade aquática, as vezes representada como uma mulher com cauda de peixe, também é como chamam os Peixes-Boi da região.

Mas existe algo material relacionado a sereias que provavelmente possui uma quantidade satisfatória de mistério em sua narrativa.



 A Sereia de Fiji


 Em Julho de 1842, um Inglês que atendia pelo nome Dr. J. Griffin, mesmo do Liceu Britânico de História Natural chega em Nova Iorque. Nas semanas que antecederam sua chegada, cartas de diversos estados haviam chegado aos jornais com histórias sobre um Dr. Griffin, de Londres, que trazia consigo incríveis criaturas, e que uma delas era nada menos que o corpo de uma sereia capturada nas Ilhas Fiji, no Pacífico Sul. Obviamente jornalistas teriam de averiguar se aquilo era verdade, e ao chegar em seu hotel, o Dr. Griffin se viu cercado por repórteres.

 Como naturalista, Griffin mostrou diversas espécies raras de plantas e animais que trazia consigo, incluindo um orangotango e um ornitorrinco vivo. Tudo muito impressionante, mas a imprensa queria um lampejo de algo mais fantástico, na esperança de confirmar que as cartas recebidas falavam a verdade.

 E logo eles confirmam isso.

No cinema ele parece o Hugh Jackman

Entra em cena o notório showman, empresário do entretenimento, e futuro fundador do Ringling Bros Barnum & Bailey Circus,  Phineas Taylor Barnum.

Além de tudo isso, ele curtia inventar umas lorotas. Isso vai ser importante mais pra frente.

 Publicamente, P.T. Barnum afirmou seu interesse em adquirir a sereia para exibi-la em seu recém-comprado museu, o “Barnum’s Grand Scientific and Musical Theater”.  Infelizmente, Griffin recusou a proposta, também publicamente. Isso acabou causando uma pequena animosidade entre os dois, especialmente quando Griffin, por conta própria, anunciou uma apresentação da sereia em um salão de concertos na Broadway.


 Barnum, que afoitamente havia criado uma grande quantidade de material de publicidade para a exibição da sereia, decidiu então ser magnânimo. Para que o material em questão, xilogravuras de belas sereias, não fosse desperdiçadas, o empresário decide doá-los aos jornais da cidade, para que anunciem a apresentação do Doutor no salão de concertos. No domingo, 17 de Julho de 1842, cada jornal da cidade, acreditando ser o único a ter recebido as gravuras de Barnum, publica anúncios sobre a exibição da famosa “Sereia de Fiji”.

 Além disso, Barnum distribuiu todos os 10.000 panfletos que também havia feito previamente, anunciando a exibição.

Muito caridoso da parte dele...

Multidões se dirigiram ao salão para assistir à apresentação do Dr. Griffin, e ter uma chance de ver o prodígio, os restos mortais de uma sereia real. Em sua palestra, Griffin contou suas experiências como explorador, e detalhou suas peculiares teorias de história natural. Por exemplo, seu principal argumento sobre a existência de sereias, era que todos seres da terra têm os eu equivalente do oceano, o cavalo marinho, o leão marinho, o lobo marinho, (o pepino-do-mar, talvez?). Obviamente, humanos do mar também era uma das opções.

 Os jornais da época continuaram dando atenção a Sereia de Fiji, mesmo depois que o espécime se revelou muito diferente das belas sereias desnudas dos panfletos de Barnum.

♪ I wanna be where the people are. I wanna see, wanna see 'em dancing ♪

 Após uma semana se apresentando no salão de concertos, Griffin entrou em um acordo para que a sereia ficasse mais tempo em Nova Iorque. E ela seria exibida por um mês, sem taxa extra alguma, no museu de P.T. Barnum, cujas vendas de ingresso rapidamente triplicaram.




O que poucas pessoas sabiam na época, é que o Dr. J. Griffin não era quem ele aparentava ser. Muito não era o que aparentava. O “Liceu Britânico de História Natural” nunca existiu. As cartas mandadas aos jornais durante semanas eram falsas, e o desentendimento público entre o naturalista e Barnum havia sido combinado.
 Na verdade, o “Dr. J. Griffin” sequer era uma pessoa real. Ele não era inglês, e seu nome verdadeiro era Levy Lyman, um amigo e comparsa de longa data de Barnum.

Mas e quanto a Sereia de Fiji? Como ela foi parar nas mãos de Barnum?

Para isso precisamos voltar alguns anos, para 1822, e ir para o mar aberto, a bordo do navio mercante Pickering. Durante uma de suas viagens, o capitão do navio, Samuel Barrett Eades resgata um mercador holandês cujo navio havia afundado. O mercador então mostra ao Capitão Eades o estranho espécime que ele afirmava ter pescado em algum lugar na costa do Japão.
 Ao ver a pequena criatura de torso simiesco e posterior pisciano, Eades pensou que aquilo iria torna-lo milionário. O capitão vendeu o Pickering e levantou $6,000 para comprar a sereia do holandês.




 Em Setembro de 1822, Eades retorna a Londres, e em um café da Rua St. James ele monta um domo de vidro onde a sereia pode ser vista de forma permanente (pelo preço de um xelim). O Capitão convida dois proeminentes naturalistas para examinarem a sereia, entre eles e comprovar sua autenticidade, e quando eles a declararam falsa, ele procura outros dois menos conhecidos, que a declaram real. 




Para reforçar a legitimidade da criatura, Eades declara que o grande naturalista, Sir Everard Home, havia confirmado que a sereia era genuína. Home ficou furioso com isso, e arranjou para que diversas publicações respeitadas anunciassem que a sereia não passava de uma fraude, a cabeça e torso de algum macaco costurados no corpo de um peixe.

Isso foi confirmado pelo Sr. William Clift, do Royal College of Surgeons, que examinou a sereia, e declarou que ela havia sido construída com um salmão unido ao torso e crânio de um orangotango, e com a mandíbula de um babuíno.


Analise de William de Clift

Foi o começo do fim para o Capitão Eades. O café fechou por falta de visitas, e o co-proprietário do Piquering o processou por ter vendido o navio e nunca ter pagado sua parte. Eades teve de navegar pelos próximos vinte anos para conseguir pagar de volta seu sócio, e quando ele morreu, a sereia foi a única herança deixada para sua filha.

Vinte anos depois, a filha de Eades vende a sereia ao proprietário do Museu de Boston, Moses Kimball. Kimball era um velho amigo de P.T. Barnum, e havia sido parte da farsa de Judith Heth, onde apresentavam uma mulher como sendo a ex-babá de 160 anos de George Washington (na verdade ela tinha pouco mais de 70). Juntos, Barnum e Kimball engendraram todo um plano para chamar atenção a sereia, antes de colocá-la em exibição no museu. As cartas, o falso Dr. Griffin, o desentendimento público, os folhetos e anúncios. Tudo cuidadosamente planejado.

A Sereia de Fiji passou os próximos vinte anos sendo exibida alternadamente no museu de Barnum, em Nova Iorque, e no de Kimball, em Boston.
 Em 1865 um incêndio destruiu o museu de Barnum. Não se sabe se a Sereia estava lá, ou em Boston na ocasião. De qualquer forma, o museu de Kimbal também pegou fogo, em 1880, tornando o paradeiro da Sereia de Fiji incerto até os dias de hoje.

O que ainda não responde uma pergunta. Qual a origem da estranha criatura?

Para isso temos de voltar mais ainda no tempo, e ir para outro hemisfério.



O Ningyo




Essa múmia com cauda de peixe e garras está exposta em um templo Xintoísta na cidade de Fujinomiya, perto da base do Monte Fuji, e supostamente tem mais de 1.400 anos.
 Segunda a lenda, essa criatura apareceu ao príncipe Shotoku (Shotoku Taishi) quando ele estava caminhando as margens do lago Biwa. A criatura agonizante disse ao príncipe que havia sido transformada naquilo como punição por ter pescado indiscriminadamente onde não devia, em um santuário animal. Ela disse que após muitos anos assim, havia aprendido sobre os horrores de destruir vidas, e estava preparada para mover para o próximo mundo. Antes de morrer, como último pedido, o ser pediu ao príncipe que construísse um templo para manter seu corpo, onde ele seria usado para ensinar as pessoas sobre a santidade da vida. O príncipe fez isso, mas após diversas ocorrências estranhas, o corpo da criatura foi transferido para outro templo, e mudou de local diversas vezes até chegar no local onde se encontra até hoje.




Existe um outro templo, o Kannon Shoji, em Shiga, que afirma ser o templo original da lenda, e que o corpo da criatura ainda está lá (mas não existem fotos).

O ser dessa lenda era um Ningyo.

O ningyo, cujo nome literalmente pode ser traduzido como “pessoa (nin) peixe (gyo)", é um yokai, um demônio-assombração das lendas. E é extremamente parecido com as sereias ocidentais em certos aspectos.


Ningyo do Toriyama Sekien's Konjaku Hyakki Shūi. (Os Cem Demônios do Presente e do Passado 1781)

 O ningyo pode ser grande como uma pessoa, ou pequeno como uma criança, mas é sempre descrito como tendo um rosto de humano, e um corpo de peixe. As vezes ele tem cabelo, as vezes não, as vezes é belo, e as vezes tem uma bocarra de macaco cheia de dentes afiados e chifres. Sua voz é doce, como a música de uma flauta, e sua carne é saborosa, dando a qualquer um que prove dela incrível longevidade. Entretanto, capturar um ningyo era considerado tremenda má sorte, e os pescadores que pegavam um por engano sempre o jogavam de volta. Um ningyo aparecer morto em uma praia, era um presságio de calamidades ou guerra.

Ilustração de 1805 de um Ningyo com mais de 10 metros supostamente capturado na Baía de Toyama.

Acontece que o templo de Fujinomiya não é o único a ter o corpo mumificado de um yokai. No templo de Karukayado, perto da cidade de Hashimoto, Wakayama, temos esse outro ningyo mumificado. 



Extremamente similar a Sereia de Fiji, não é?

O fato é que nos corredores dos templos budistas e xintoístas por todo o Japão, estão uma legião de múmias monstruosas. Os restos preservados de yokais e demônios. Ningyo, Kappa, Tengu, Raiju, e diversos outros. Pode parecer estranho ter esse tipo de criatura em um templo, mas provavelmente faz mais sentido mantê-los ali, onde os sacerdotes podem vigiá-los de perto.

No templo Zuiryuji, em Osaka, existe uma sereia mumificada, que foi dada como oferenda por um mercador de Sakai em 1682. O templo também possui um Kappa mumificado.




O Templo Myouchi, na cidade de Kashiwazaki, Niigata, também tem uma.



 E templos não são os únicos locais que tem criaturas desse tipo.

Por anos, os donos da cervejaria Matsuuraichi, em Saga, mantiveram o mote "nos temos algo raro nessa casa". Após 17 gerações o significado original da frase já havia basicamente se perdido, até que em 1953, uma caixa de madeira com os dizeres "kappa" foi encontrada escondida no telhado. Hoje o Kappa mumificado está exposto para todos os visitantes.



Algumas dessas múmias podem até ser encontradas em museus.


Uma múmia de Kappa e duas de Tengu.

E como uma dessas criaturas foi parar nas mãos de um mercador Holandês?

Bem, na Edo (hoje Tokio) do século XVIII e XIX, e por quase duzentos antes disso, havia algo chamado misemono. Pense em uma quermesse, um pequeno festival, as vezes organizado rapidamente, com exibições de artesanato e coisas assombrosas, acrobatas, animais, lembranças sendo vendidas e atrações que serviam para atrair sorte, saúde e fortuna para os visitantes. Geralmente aconteciam para reunir fundos para um templo ou santuário especifico. E que melhor atração para provar que um templo merecia doações, do que as estranhas criaturas guardadas nele?

Uma das atrações que invariavelmente poderiam ser encontradas em um misemono, eram sereias mumificadas.

Escola P. T. Barnum de anunciar sereias. O produto final pode não parecer com a ilustração.

Agora, eu preciso explicar que, embora quando a pergunta sobre a origem dessas múmias de yokai é feita, a resposta padrão varie entre alguma lenda (implicando que são realmente os restos de um ser sobrenatural), ou que ninguém se lembra da origem de tais criaturas, as vezes a resposta é que elas, de fato, foram feitas por alguém, mas após um encontro com a criatura real. Uma forma de marcar o acontecimento. É como se a múmia criada fosse imbuída com a autenticidade da criatura. Como na história em que um pescador encontrou um ningyo morrendo, e com seu último folego, o ser previu uma época de grande prosperidade, mas também uma epidemia fatal que apenas poderia ser evitada mantendo uma efígie da própria criatura.

Ter sido construída por um pescador, não torna a múmia de um ningyo ou kappa menos legítima. A mágica vem da história que a acompanha, não das circunstâncias em que elas foram criadas.

Vale a pena lembrar das lendas sobre os Tsukumogami, uma classe de assombração composta por objetos que se tornaram yokais após completar 100 anos. E sua origem mundana não as histórias sobre eles menos assustadoras.
Kasa-Obake, Biwa-bokuboku, Bakezōri  e Chōchin-obake.  Que são um guarda-chuva, biwa, sandália e lanterna

Na época do Sakoku, a política isolacionista do xogunato Tokugawa, décadas antes do Comodoro Matthew Perry e sua frota em 1853, os holandeses eram os únicos ocidentais que podiam manter relações comerciais com o Japão. O mercador holandês que vendeu a lendária Sereia de Fiji ao Capitão Eades, provavelmente a comprou em um misemono em Dejima, uma ilha aritifical criada na baía de Nagasaki apenas para o comércio com estrangeiros.

Quando o comercio com o Japão já estava aberto, e a história de Sereia de Fiji de Barnum já havia percorrido ocidente e oriente, novas sereias mumificadas começaram a surgir em circos itinerantes e museus. Muitas eram muito parecidas com o original, já outras... 




Novas Espécies



A sereia de Buckland. Curiosities of Nature Vol 2 1860

Em Agosto de 1858, o Professor Richard Owen escreveu a Frank Buckland, pedindo que ele examinasse uma Sereia de Fiji, e escrevesse de volta a ele com os resultados. Buckland, animadíssimo com o pedido do eminente cientista, correu para o salão em Spitalfields, onde encontrou a sereia, exposta atrás de uma vitrine.

No exame ele chegou a conclusão que a sereia era feita com o tronco de um macaco costurado no que Buckland suspeitava ser uma pescada. Os dentes de macaco haviam sido transferidos para a mandíbula do macaco, junto com um incisivo humano, e o espaço para outro, para aparentar ter caído, um detalhe que impressionou Buckland. A impressão, segundo o relatório, era a de "um velho atravessado que estava tentando não rir".

 Buckland ainda examinou outras duas sereias, uma em uma loja de curiosidades em Hungerford, feita por um taxidermista de Londres, e outra que pertencia a um Capitão Cuming R. N., comprada em Yokohama.

 Um nicho de venda de sereias mumificadas para turistas havia surgido no Japão, com a demanda por elas no ocidente. Mas esses novos exemplares eram diferentes da Sereia de Fiji, e das outras nos templos, associadas ao ningyo. Como se tivessem sido feitos de um jeito mais simples, e rápido.
 Enquanto a Sereia de Fiji havia sido feita para ser exibida de pé, e tinha os braços junto ao rosto e cauda curvada, as novas sereias vinham em uma posição rastejante, além de ter pescoços finos e costelas muito mais proeminentes.

Como a sereia que hoje se encontra no Peabody Museum of Archeology and Ethnology, em Harvard. Curiosamente, esse exemplar veio da coleção pertencente ao museu de Moses Kimball, parceiro de P. T. Barnum e um dos organizadores da farsa original da Sereia de Fiji.


Uma analise recente da Sereia de Fiji do Horniman Museum, feito por Paolo Viscardi, curador de zoologia do Museu Nacional da Irlanda, com ajuda do Dr. James Moffatt, da St. George University of Londonincluindo radiografia, ultrassom, e um scan 3D, revelou detalhes interessantes sobre a fabricação desses espécimes "novos" de sereia.



A primeira revelação, foi a total ausência de qualquer parte de macaco. Na verdade, com exceção dos dentes encaixados na mandíbula e das barbatanas, a sereia não possuía nenhuma estrutura óssea. Ela foi montada com argila e tecido sobre uma base de madeira e arame, com o acabamento sendo feito com a pele de um peixe real, e hariko, a técnica japonesa de papier mâché.




Estranhamente, dos exemplares de ningyo japoneses já analisados, nenhum possui qualquer traço de macacos em sua composição. Como o exemplar comprado pelo holandês Jan Cock Blomhoff, diretor de comércio estrangeiro em Dejima entre 1817 e 1824, hoje no Museu de Etnologia de Leiden. Essa sereia era contemporânea da Sereia de Fiji, provavelmente feita na mesma época, e é do mesmo estilo, evocando o ningyo, mas sua analise também não apresentou nada de símio, apenas de peixe. 


Sereia de Jan Cock Blomhoff

É possível que a Sereia de Fiji original de fato possuísse a mandíbula de um macaco-japonês, uma espécie desconhecida por de Clift, que escreveu uma das primeiras analises, o que o fez incluir alusões a orangotangos, ou babuínos. Isso pode ter criado a persistente noção que as Sereias de Fiji eram feitas costurando macacos em peixes. Infelizmente, com o desaparecimento da Sereia original, nunca saberemos.




Isso não muda o fato que as sereias do segundo tipo, como a de Buckland, ou do Peabody Museum, apresentam um grande distanciamento das versões originais associadas ao ningyo, bem como de todo o seu contexto cultural e religioso. Houve uma transformação nas sereias quando elas começaram a ser construídas para colecionadores e turistas que passavam pelo Japão a partir de 1860, e eventualmente pelos taxidermistas e outros artistas que passaram a fazê-las no resto do mundo do início do século XX em diante.

Como já mencionei anteriormente, seres aquáticos fantásticos existem no folclore de diversas cultura, e geralmente, a interpretação sobre os paralelos entre eles é temperada pela cultura de quem as analisa.
 Certas representações desses seres tem significados específicos relacionados a certas narrativas de sua cultura de origem, mas isso não impede que esses significados sejam ofuscados por uma narrativa diferente.

A Sereia de Fiji é um ótimo exemplo dessa metamorfose.

Muitos museus e coleções de curiosidades pelo mundo classificam e discutem as Sereias de Fiji usando sua autenticidade, ou falta de autenticidade, como base da narrativa. Sempre voltando a notoriedade da armação criada por P. T. Barnum como ponto principal, e propagando a noção que eram quimeras de taxidermia, criadas com rabos de peixe costurados em macacos, e que o único motivo de merecerem atenção é o fato de serem uma fraude. Viscardi propôs nomenclaturas para os dois tipos mais comuns de Sereia de Fiji nos moldes da taxonomia clássica para fugir dessa ideia. As Sereia de Fiji nos moldes do ningyo seriam as Pseudosiren Eadesii, por conta do pobre Capitão Eades, que começou a exibi-la, e a sereia rastejante que surgiu depois, seria a Pseudosiren Bucklandii, por conta de Frank Buckland, que pesquisou várias delas.
 Mesmo elas não sendo criaturas vivas, a ideia representa um passo em direção a vê-las com algo com méritos próprios, já que os fatos por trás da fraude da Sereias de Fiji são igualmente merecedores de atenção, e seria uma boa opção começar a enxergá-las pelo que elas são, e não só porque tentaram passá-las por alguma outra coisa.

Talvez  essa divisão seja parte da bagagem dos seres de natureza dupla, sempre serem encarados de maneiras distintas. Humanos por um ponto de vista, peixes por outro, sereias de acordo com uma narrativa, dugongos e peixes-boi por outra, Ningyo e Sereias de Fiji.

 Provavelmente Kafka estava certo. O silêncio das sereias é mais impossível de se escapar do que o seu canto, e provavelmente vamos continuar tentando preencher esse silêncio por muito tempo ainda.


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