terça-feira, 2 de julho de 2019

Os Vampiros da Nova Inglaterra





Outro dia essa notícia me apareceu Homem no Camboja é preso e exorcizado após rasgar a garganta de cinco animais e sugar o sangue deles até morrerem . Aconteceu no distrito Cambojano de Koh Sotin, e o homem em questão foi levado até um monge (pela polícia!) para que fosse exorcizado. O monge confirmou que ele tinha sido possuído por um espírito faminto.

O caso me fazer lembrar daqueles casos de canibalismo de alguns anos atrás, aqueles que muita gente pensou, mesmo que durante alguns instantes, ser o começo do apocalipse zumbi, até descobrirem que era tudo causado por uma nova droga. Além disso, a notícia me fez lembrar de um outro caso que rolou, mas em outro século, e sem envolver zumbis. Mas envolve um outro tipo de morto-vivo...


Tuberculose


A tuberculose assolava a população da Nova Inglaterra no Século XIX. Em 1800 a doença era uma das, senão a maior causa de mortalidade da população. Uma em cada quatro crianças nascidas morriam de tuberculose antes dos seis anos. A doença geralmente se espalhava por famílias inteiras, especialmente famílias mais pobres, onde todos dormiam juntos, às vezes na mesma cama

Se uma pessoa morria de tuberculose em uma família, era quase certo que lentamente os outros membros da família também iriam começar a apresentar os mesmos sintomas.


Em 1882 descobriram a bactéria que causava a tuberculose, mas no interior e em todos os lugares mais distantes das grande capitais, ainda achavam que era uma “doença hereditária”, ou ainda que era causada por bebida, por pobreza, que era algo que se tratava com cavalgadas e bebendo açúcar mascavo diluído em água.

E as vezes nem chegavam a pensar que era uma doença de fato, pois existia uma outra explicação para esse mal que estava muito mais a mão.

Vampiros


Vampiros atacando membros de uma família durante a noite, movendo de um para o outro, até que todos eles tenham morrido. Afinal, quando não era uma tuberculose galopante que matava rapidamente, a pessoa definhava a longo de muito tempo, chegando a passar anos sofrendo de febres, transpirando constantemente, sofrendo de crises de tosse com sangue, e ficando cada vez mais emaciados e cadavéricos. CLAROS SINAIS DE ATAQUE DE VAMPIROS, obviamente.

Por incrível que pareça, entre a tuberculose que matava rapidamente, e a que levava meses ou anos, as pessoas geralmente acreditavam que morrer de tuberculose do jeito lento, era uma morte melhor, porque a pessoa podia acertar todos os seus assuntos pendentes antes de partir. Não demorou para que alguns artistas, e certas pessoas das classes altas, começassem a criar uma romantização disso, como se estar morrendo de tuberculose te deixasse mais sábio, de alguma forma (bem, não duvido que fosse algo que mudasse sua perspectiva das coisas, pelo menos). E em meio ao simbolismo, decadentismo, o Mal du siècle, Werther-Fieber, Weltschmerz, Spleen e tudo mais, isso pegou um jeito meio... intenso.


Muitos poetas dormindo ao relento, ou com os pés em bacia de água fria durante a noite pra ver se pegavam pneumonia (alternativa a tuberculose), e se palidez já era algo da moda (indicava que não se saia ao sol, ou seja, gente que não precisava trabalhar, ou seja, gente que podia se “dedicar a perseguir seus ideais artísticos e estéticos completamente”), a moda ficou sendo mais puxada pro cadavérico. Para ficarem pálidas e emaciadas, mulheres usavam maquiagens que continham amônia ou arsênico,


Essa propaganda aí nem é exatamente de maquiagem, eram biscoitos com arsênico pra se mordiscar durante o dia e ficar com aparência... bem, de se estar doente por envenenamento (anunciavam com o"perfeitamente seguro").

Para os olhos ficarem sempre quase marejados, usavam colírios com mercúrio, suco de limão, perfume, ou gotas de uma infusão de beladona (que duravam mais, mas podiam causar cegueira). Com o tempo eram necessárias doses maiores de arsênico, porque o sistema invariavelmente tentava se adaptar. E tirando os efeitos colaterais normais, queda de cabelo, vitiligo, etc, ainda havia o fato de que várias dessas substâncias causavam dependência.

Lola Montez, a famosa bailarina exótica, cortesã, e por um tempo amante do Rei Ludwig I, recomendava banhos de arsênico para manter a palidez. Mas já avisava, uma vez que você se acostumasse com os banhos, teria de manter o hábito para sempre pra não morrer rápido.

Enfim, voltando aos casos de tuberculose. Se várias pessoas de uma mesma família morriam em uma mesma época, já ligavam o alerta de vampiro, porque de acordo com as lendas, os vampiros quando retornavam, sempre atacavam primeiro os membros da própria família.

O que faziam nesses casos, então, era desenterrar a primeira pessoa da família que havia morrido e fazer todos os procedimentos básicos de exumação pra ver se a pessoa era de fato, um vampiro. E o que se seguia era algo que se repetia em todas as narrativas dos casos de vampiros ainda no Velho Mundo:

Se o corpo fosse recente ele ia estar inchado com gás (o que assumiam ser por ele ter se "alimentado" recentemente).
Se o sangue (que pode voltar ao estado líquido após coagular) jorrasse ao corpo ser perfurado, isso era mais uma prova.
Se o corpo não fosse tão recente, o recuo que acontece com a pele ia dar a aparência dos cabelos e unhas terem crescido (que assumiam era resultado do cadáver não estar realmente morto, e sim existindo como morto-vivo).

Depois de decidirem que a pessoa em questão era um vampiro, o procedimento variava de região pra região. Em Vermont e Connecticut, eles arrancavam o coração do corpo e queimavam, já no Maine e em Massachusetts eles só viravam o corpo ao contrário (para quando ele tentasse sair, ele cavasse para baixo), em Rhode Island eles tiravam todos os órgãos, queimavam, decapitavam e enterravam de novo o corpo sem a cabeça, e como medida de proteção o resto da família geralmente comia o coração queimado do morto tuberculoso, ou bebiam uma infusão feita com as cinzas do corpo.

Essa variação de métodos sempre foi comum. Na Europa o favorito era a estaca ou barra de ferro para prender o corpo no caixão (e a decapitação). Essa é uma gravura francesa de 1864 mostrando a exumação de um vampiro:


Mas também havia outros métodos. Existem vários tipos de vampiros, e várias maneiras de se parar um deles, tudo varia de acordo com a região; podem prender os pés do suposto vampiro com um barbante, ou com espinheiros, colocar uma foice no pescoço do corpo para ele próprio se decapitar quando levantasse, esmagar seus dentes com um um tijolo...

Esses são esqueletos de suspeitos de serem vampiros encontrados na Polônia.


Esses mitos da Europa vieram para América com os imigrantes, e o primeiro caso registrado oficialmente na Nova Inglaterra foi em uma carta de 1784 para o jornal "Connecticut Courant and Weekly Intelligencer" sobre um médico que estava aconselhando famílias a exumar e queimar os corpos de pessoas que tinham morrido de tuberculose.

Incidentes


Há o caso de Rachel Harris, que morreu de tuberculose em 1790, e um ano depois, o marido dela, o Capitão Isaac Burton, se casou com sua meia-irmã, Hulda, que logo começou a apresentar os mesmos sintomas da Rachel. A família então supôs que a culpa era da falecida, e em Fevereiro de 1793, mais de 500 pessoas residentes de Manchester se reuniram ao redor de uma forja para queimar o coração, fígado, e pulmões de seu corpo exumado. Quando a Hulda morreu alguns meses depois, eles se justificaram dizendo que talvez a Rachel não fosse um vampiro, e sim uma bruxa, por isso a solução deles não deu certo.

Também há o caso de Sarah Tillinghast, que teria passado a visitar os seus 13 irmãos pouco após morrer. Em 1799 cinco dos irmãos morreram de tuberculose, e quando mais um adoeceu, eles exumaram todos os filhos falecidos. O corpo de Sarah era o menos decomposto, ou seja, ela era a culpada, então queimaram seu coração na frente da casa, para impedir que ela retornasse.

Também há o caso Nancy Young, de 19 anos. Em 1827 sua irmão fica doente, e ela em seguida, morrendo muito rápido. Pouco depois os vizinhos viram mais gente ficando doente, e resolveram desenterrar a menina. Queimaram seu corpo em uma pira funerária, e a família ficou me volta respirando a fumaça da queima porque achavam que isso ia dar a eles algum tipo de imunidade a ataques vampíricos.

Entretanto, em Agosto a irmã, que havia sido a primeira a adoecer, morreu, em dezembro um dos irmãos, em agosto outro, e outro em maio... assim por diante. Estudos feitos décadas depois revelaram que provavelmente o poço da propriedade deles estava contaminado, e isso havia sido a causa das mortes.

Frederick Ramson era um estudante que que morreu de tuberculose em 1817, no dia dos namorados. O pai dele, para que o filho não voltasse como vampiro, desenterrou o corpo e queimou o coração dele na frente de centenas de pessoas.

Em 1830, em Woodstock, um jovem chamado Corwin morreu de tuberculose, e quando seis meses depois o irmão dele adoeceu com a mesma doença, o povo da cidade falou que era um caso de vampirismo. Isso inclui DOIS MÉDICOS do Vermont Medical College, o Dr. Joseph Gallup, e o Dr. John Powers, que confirmaram que era vampirismo e mandaram exumar o corpo do Corwin, que tinha sido enterrado no Cushing Cemetery

(eu sei, eu sei, caso de vampirismo... "Cushing" Cemetery, não me passou desapercebido)

Eles viram que o coração não tinha se decomposto e estava cheio de sangue, então o queimaram e enterraram o resto em um buraco de 3 metros de largura por 15 de profundidade, cobriram com um bloco de granito de sete toneladas e encheram o buraco de terra.


São muitos casos, em muitas cidades. E até mesmo Henry David Thoreau chegou a mencionar sobre eles.


Em seu diário: "26 de Setembro 1859: O selvagem no homem nunca é totalmente erradicado. Eu acabei de ler sobre uma família em Vermont que ao ter vários filhos perecendo vítimas da 'consumação', queimaram os pulmões e coração do último falecido para impedir que outros morressem"

A consumação é a tuberculose, que por sinal, foi o que matou o Thoreau (mas no caso dele, não atribuíram a vampiros). No trech odo diário ele provavelmente estava falando sobre o caso da família Spaulding, que segue o mesmo padrão das outras.


Houve um caso em Exeter, que começa em 1883.
Repito Mil Oitocentos e Oitenta e Três.

(Sabe o que já existia em 1883? Eletricidade já existia. Também já xistiam lâmpadas e telefones.)

Em Dezembro de 1883, a mãe de uma moça chamada Mercy Brown morre de tuberculose. Sete meses depois, a irmã mais velha, Mary Olive, também morre. Em 1891, Mercy e seu irmão, Edwin, ficam doentes, e são enviados para o Colorado pra ver se melhoram com o clima mais seco. Edwin volta, o clima seco não ajudou e ele está morrendo. A essa altura, a Mercy já havia morrido, porque a tuberculose dela foi do tipo bem intenso e rápido.

Isso já serviu para que os moradores da região ficassem alertas… a família toda morrendo, qualquer um podia ser o próximo. Logo começaram a falar que Mercy havia sido avistada andando pela cidade durante a noite, e obviamente ela era um vampiro.
Convenceram o pai de Mercy a exumar a filha e “fazer o que era necessário”.
Sabe... tudo o que se faz para matar um vampiro.

EM MIL OITOCENTOS E NOVENTA E DOIS!
Sabe o que já existia em 1892?
Cinematógrafos, fonógrafos, turbinas, rodas Gigantes, tratores, lentes de contato, trens elétricos no metrô de Londres, escadas Rolantes, automóveis... já existia até COCA COLA!

Pra que não continuassem a atormentá-lo, o pai da Mercy concordou com a exumação, mas só se um médico, o Dr. Metcalf, estivesse junto. Quando o médico chegou, já tinham começado a desenterrar os corpos. A irmã mais velha e a mãe, que tinham morrido há alguns anos, eram esqueletos, então determinaram que elas não eram vampiros. E então exumaram a Mercy.
Acontece que a Mercy não estava enterrada, ela estava em um cripta acima da terra porque era inverno, e não dava pra cavar na terra congelada, eles iam enterrar ela quando mudasse a estação. Essa era a cripta:

O médico examinou o corpo e falou que os pulmões dela estavam infectados com tuberculose, mas o pessoal da vila não quis nem saber.

- Ela é obviamente um vampiro, tem sangue fresco dentro dela!
- É sangue que voltou a ser líquido, acontece com corpos, é um fato médico...
- O cabelo e as unhas dela cresceram!
- Na verdade isso acontece porque a pele recua e dá a impressão...
-Ela está perfeitamente conservada, é um claro sinal que ela é um dos mortos-vivos que retornou para sugar o sangue de seus familiares!
- Ela morreu no inverno, ainda é inverno, e ela estava dentro de um MAUSOLÉU CONGELADO... quer saber, desisto.

Tiraram o coração dela e queimaram, depois misturaram as cinzas com água e deram para para Edwin, que estava morrendo, beber, e livrar ele da maldição.
E ADIVINHA?
Dois meses depois o Edwin morreu.

Esse pânico de Vampiros na região durou um século inteiro.
Existem cerca de 80 casos confirmados, e mais algumas centenas que não puderam investigar, ou que fizeram na encolha, começando em 1700, e indo até o fim do século XIX.


O Lovecraft, que era da região, conhecia bem a história da Mercy Brown, e chegou a usar elementos dela em The Shunned House (e ele tinha o folclorista Sidney Rider pra ajudar nos detalhes). Isso tudo saía nos jornais da época e era um fenômeno bem conhecido.




E obviamente rolavam umas galhofas desse tipo também:



Coincidentemente, sabem quem estava viajando pelos Estados Unidos nessa mesma época, lá por 1896, em um tour com o Lyceum Theater, e leu um recorte sobre o caso da Mercy Brown?

Ele mesmo:
BRAM STOKER


Dracula é publicado um ano depois, em 1897. Ele já estava pesquisando e trabalhando no livro a seis anos quando passou pelos Estados Unidos, mas com certeza conhecer o caso da Mercy Brown e todo o resto influenciou bastante em certas coisas presentes na versão final do livro.

É levemente perturbador pensar que pouco mais de um século atrás ainda aconteciam casos de pânico coletivo envolvendo vampiros. É ainda mais perturbador pensar que em 2004, na vila romena de Marotinu de Sus, um grupo de pessoas convencidas que o falecido Petre Toma havia se tornado um vampiro e estava visitando sua sobrinha, desenterraram seu cadáver, abriram seu peito, removeram seu coração, e após queimar o corpo, misturaram as cinzas com água para que a família bebesse, e nunca mais fosse importunada pelo parente morto-vivo. Apesar do governo Romeno ter banido a prática, e o grupo de caçadores de vampiros terem sido presos pela polícia de Craiova por "perturbarem a paz dos mortos", desde então, a vila vizinha de Amarastii de Sus, tem cravado uma estaca de ferro fundido no coração ou estômago de alguns dos seus mortos, como medida "preventiva".


Quem dera fossem essas as únicas consequências de perigos imaginários sendo espalhados pela mente de pessoas que acreditam em tudo facilmente...

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Bem, para quem quiser ler mais sobre o assunto, aqui tem um artigo da Smithsonianmag sobre tumulo de suspeitos vampiros (que fala sobre a Mercy Brown) The Great New England Vampire Panic, e aqui sobre alguns casos parecidos ao redor do mundo
Aqui é da Woodstock Historical sobre o caso do Corwin e do Frederick Ransom
Esse do American Journal of Physical Anthropology (via webarchive) sobre os casos da Nova Inglaterra Sobre o caso de Marotinu de Sus e Amarastii de Sus (spoiler: os "caçadores de vampiros" decidiram desenterrar o suspeito depois de passar a noite bebendo)

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

O Estranho Caso dos Dois Draculas


Drácula.

Senhor das terras que se estendem do passo Borgo, e do castelo que leva seu nome.
Soldado, estrategista, possível voivoda da Terra Além da Floresta.
Alquimista, feiticeiro de Scholomance, discípulo do próprio diabo.

O Rei dos Vampiros.

Personagem-título do romance de horror gótico que influenciou todos os vampiros da ficção após sua publicação em 1897, Drácula já apareceu e teve a sua história adaptada para diferentes mídias mais vezes que qualquer outro personagem do gênero, se tornando o arquétipo ocidental para a figura do vampiro clássico.


É uma figura inconfundível. E sua história, a do monstro inumano que se passa por cavalheiro, deixando as ruínas de seu castelo para se alimentar da vida de pulsa em um grande centro da civilização pode ser vista em inúmeras obras, seja no plano de Kurt Barlow em A Hora do Vampiro de Stephen King, ou no Vampiro Lestat, de Anne Rice, voltando a desfrutar do mundo em uma banda de rock após anos de letargia.

Sem nem entrar no assunto dos tons de ansiedade vitoriana colonialista, invasão e tensão étnica da obra original, podemos dizer que a marca de Drácula nos outros vampiros é algo muito mais visível que os prosaicos orifícios deixados no pescoço de suas vítimas.

E se eu dissesse, após tudo isso, que existe mais de um Drácula?
E não apenas isso. Que existe mais de um Drácula saído da pena do próprio Bram Stoker (mais ou menos).

Bem, é exatamente isso que estou dizendo.

Começo aqui o Dossiê do Estranho Caso dos Dois Dráculas.

Pedaços Perdidos



Entre o pesadelo com um Vampiro-Rei se erguendo do túmulo que Bram Stoker teve após uma jantar de caranguejos mal digerido, e a publicação da versão de Drácula que conhecemos, temos um longo período de tempo. Nesse período o autor irlandês pesquisou sobre o folclore Europeu e suas histórias de vampiros, ouviu sobre Abhartach, o tirano insular que bebia sangue, leu os escritos de Emily Gerard sobre as superstições da Transilvânia, se deparou com a figura histórica de Vlad III, O Empalador, que daria o nome ao seu personagem e livro (muito melhor que o inicial, e nem um pouco discreto “Conde Wampyr”), e presenciou o pânico da população da Nova Inglaterra, que assustados com os surtos de tuberculose que afetavam e matavam um a um membros de certas famílias, chegaram a conclusão que era tudo causado por vampiros, exumando e trespassando corpos com estacas, decapitando e queimando os cadáveres de entes queridos, e até consumindo seus corações na esperança de se livrar da maldição que acreditavam existir.

Em todo esse período, Bram Stoker trabalhou no manuscrito de seu livro, e obviamente as primeiras versões são consideravelmente diferentes do produto final. Diversos personagens presentes nas anotações originais para o livro não aparecem no romance, mas a indicação mais conhecida do material apócrifo de Dracula, está na conto “O Convidado de Drácula”, presente na coletânea “O Convidado de Drácula e Outras Histórias”, publicado pela primeira vez em 1914, dois anos após a morte de Stoker.

O livro contem nove histórias, mas que nos interessa aqui é a que dá o título ao volume.

O conto acompanha um viajante inglês (que em momento algum ouvimos o nome, mas provavelmente se trata de Jonathan Harker) em uma visita a Munique, antes de partir para encontrar alguém que o espera na Transilvânia. Apesar dos alertas dos locais para que não vá pra muito longe, ou retorne muito tarde, pois aquela é a Noite de Santa Valburga (Walpurgisnacht, que é quase um esquenta para o Halloween), o viajante deixa sua carruagem e anda rumo a uma vila abandonada, enquanto é observado por um estranho alto e magro (que muito provavelmente é o próprio Drácula).


Pego por uma nevasca, o viajante Inglês se refugia em um cemitério cercado por um bosque. Ali ele se depara com o mausoléu de mármore de uma certa “Condessa Dolingen de Gratz” que suicidou-se. Dentro da tumba, o viajante encontra a própria Condessa, não como um cadáver, mas apenas como se estivesse adormecida. Antes que possa investigar qualquer coisa, uma força misteriosa o puxa para fora da tumba, que é atingida por um raio e destruída completamente no exato momento em que a figura loura se levanta do mármore onde repousava. Ouvindo os gritos da Condessa, o viajante inglês perde a consciência, e ao acordar, se depara com um gigantesco lobo de olhos flamejantes deitado sobre o seu corpo e lambendo sua garganta. Quando cavaleiros chegam para resgatá-lo, afugentando a fera, eles constatam que o lobo (que mencionam ser "um lobo, mas que também não é um lobo"), apenas manteve seu corpo aquecido durante a noite fria.

Ao ser levado de volta ao hotel, o viajante encontra um telegrama do anfitrião que o espera na Transilvânia, Drácula, que o avisa sobre os “perigos da neve e dos lobos e da noite”.

Florence Balcombe, viúva de Bram Stoker
Retrato feito por Oscar Wilde... seu ex.
No prefácio da edição original do livro, a viúva de Stoker, Florence, menciona “À lista de histórias originais desse livro, eu adicionei um episódio inédito de Dracula. Ele foi originalmente cortado devido ao comprimento do livro, e pode ser de interesse aos leitores do que é considerado o trabalho mais notável de meu marido”.

 Nos anos 80, um dos manuscritos originais de Drácula foi encontrado em um celeiro da Pennsylvania. Com 541 páginas, o livro ainda mantinha o título “The Un-Dead” rabiscado na página de rosto (nome que só foi mudado algumas semanas antes da publicação), e era uma cópia que pertencia a Thomas Corwin Donaldson, um advogado americano que foi amigo pessoal de Stoker.

 Entre inúmeras pequenas diferenças desse manuscrito com a versão final do livro, está um trecho em que Jonathan Harker menciona que sua garganta “ainda está dolorida por conta da língua áspera do lobo”, uma referência clara ao trecho cortado do livro, que seria o primeiro capítulo. Além disso há um trecho em que, ao ser perseguido pelas três vampiras que habitam o castelo, Harker identifica a vampira loura que o tenta “beijar” como sendo a mesma mulher que ele havia visto na tumba em Walpurgisnacht.

 Curiosamente, a tal Condessa Dolingen de Gratz, é mencionada como proveniente da Styria, local onde se passa outra história... uma tão influente quanto Dracula na trajetória dos vampiros na ficção. É em um castelo da Styria onde se passa Carmilla, de Sheridan Le Fanu, publicado 26 anos antes do romance de Stoker. É possível que a presença da personagem tenha sido uma pequena homenagem a essa obra (ou então, uma declaração alegórica de que o seu novo vampiro estava tomando o lugar da criação de Le Fanu).

Marcilla ataca a adormecida Bertha, D. H. Friston (1872) mas minha primeira opção foi por uma imagem da Natasha Negovanlis

Uma outra mudança que essa versão anterior de Dracula tinha, era um novo final. Após o trecho do livro, nas ultimas páginas, que dizia “Agora o Castelo de Drácula parecia emergir do fundo de um céu ensanguentado” vinha o paragrafo abaixo:

Enquanto olhávamos veio um terrível tremor da terra, tanto que chegamos a perder o equilíbrio, caindo de joelhos. No mesmo instante, com um rugido que parecia sacudir o próprio firmamento, todo o castelo, as pedras, e até mesmo o pico em que se erguia pareceu levantar no ar e se desfazer em fragmentos, enquanto uma nuvem de fumaça negra e amarelenta se erguia com inconcebível rapidez.
A natureza parou enquanto os ecos daquele acontecimento estrondoso se esvaiam no estampido oco de um trovão - reverberando como se os alicerces dos céus tremessem. Então, da poderosa ruína que se desfazia vieram os fragmentos que o cataclista havia lançado para longe.
De onde estávamos o que parecia é que uma selvagem erupção vulcânica havia satisfeito um, desejo da natureza, afundando o castelo e toda a estrutura do pico no abismo. De tão chocados com a grandiosidade repentina do acontecido, esquecemos de pensar em nos mesmos.”



Esse trecho com a destruição do castelo foi tirado pelo próprio Bram Stoker, e não por seu editor, provavelmente para evitar comparações com o final de “A Queda da Casa de Usher”, de Edgar Allan Poe.

A existência das versões anteriores de Dracula também tem confirmação em outro lugar peculiar. Em diferentes cartas à diferentes pessoas, H.P. Lovecraft menciona que sua amiga, a jornalista Edith Dowe Miniter, teve oportunidade de revisar um manuscrito preliminar de Dracula, que ela considerou extremamente desleixado, cobrando mais pelo serviço do que Stoker estava disposto a pagar. Essa Edith Miniter havia sido a mesma que publicara uma critica extremamente negativa sobre a passagem de Sir Henry Irving e sua trupe teatral pelos Estados Unidos, em 1894. Passagem essa em que Bram Stoker ocupava o papel de contato de imprensa.

Por fim, em 26 de Maio de 1897, Dracula foi publicado na Inglaterra pela Archibald Constable and Company, e por seis xelins, você poderia comprar a edição original, com sua capa amarela e título em vermelho.

 O livro recebeu críticas positivas na maioria dos jornais da época, e foi então traduzido e publicado em muitos outros países depois disso, incluindo a Islândia, Suécia, Hungria, e Estados Unidos.

E é aqui que a história se complica.


Um Achado Peculiar



Em 1986 o pesquisador Richard Dalby escreveu sobre o prefácio da edição islandesa de Dracula. Lançada com o título Makt Myrkranna (Poderes das Trevas), a tradução foi publicada em 1901, e o prefácio em questão, escrito pelo próprio Bram Stoker, apresenta mudanças intrigantes; como uma ênfase extra sobre a veracidade da narrativa apresentada, e menções crimes britânicos que não estão presentes na edição Inglesa original. O prefácio especial de Makt Myrkranna permaneceu apenas como uma curiosidade por décadas.

Entra em cena o holandês Hans Corneel de Roos.

No fim de 2013, De Roos, que é historiador e pesquisador da obra de Bram Stoker resolveu completar um estudo prévio sobre a ideia plantada pelo autor de que os relatos sobrenaturais do livro seriam verídicos.

Por razões que não posso explicar muito bem – provavelmente enraizadas em traumas de infância e uma falta de confiança em verdades estabelecidas – eu pensei que seria uma boa ideia comparar a tradução de Dalby do prefácio com o texto Islandês original. Uma cópia em facsimile dele havia sido publicada em 1993 no The Bram Stoker Journal, junto ao artigo de Dalby, mas, novamente por razões que eludem a mente racional, eu quis voltar a fonte e achar eu mesmo uma cópia da edição de 1901. Eu escrevi para várias istituições em Reykjavík e tive sorte de entrar em contato com Katrín Guðmundsdóttir e Einar Björn Magnússonn, da Biblioteca Municipal de Reykjavík, que educadamente me mandaram um scan novo do prefácio de sua cópia de Makt Myrkranna.”

Já era o início de 2014 quando De Roos começou a transcrever a cópia da biblioteca, e a traduzí-lo, comparando com a tradução de Dalby. Foi quando, ao buscar certo trecho do prefácio na barra de busca do Google, ele se deparou com um outro scan do prefácio em um site da internet, mas não do livro, e sim de uma serialização da história em um jornal Islandês, datada de um ano antes da publicação oficial de Makt Myrkranna.


A serialização de Dracula no jornal Islandês Fjallkonan não foi a primeira. O livro foi publicado nesse formato no jornal norte-americano Charlotte Daily Observer em 1899, e no jornal hungaro Budapesti Hírlap em 1898 (provavelmente a primeira tradução da obra para outro idioma). Mas essas são descobertas recentes, e não tornam as serializações da obra em jornal menos raras. De Roos conseguiu encontrar, no mesmo site em que descobriu o prefácio, todas as edições seguintes do jornal em questão, conseguindo uma transcrição completa de todos os episódios de Makt Myrkanna.

Acontece que o livro que ele encontrou era completamente diferente do Dracula que nós conhecemos.


Poderes das Trevas:  Dracula Director's Cut Redux



Makt Myrkranna é menor que Dracula, mas a primeira parte do livro, com Harker no castelo do Conde, é consideravelmente maior que a da publicação original. A segunda parte do livro é quase que uma versão resumida do resto da história, tudo se resolve em cerca de 40 páginas de narrativa truncada. Além de ultra condensada, ela subitamente deixa o característico estilo epistolar. Certos personagens, como Renfield, sequer aparecem, e quatro páginas após Van Helsing ter explicado como se mata um vampiro para que combatam o Conde, Drácula já está morto, em uma sequência de poucos parágrafos. É quase como se o tradutor islandês, Valdimar Ásmundsson, estivesse com pressa de terminar o trabalho para que a história pudesse ser publicada no jornal.

Valdimar Ásmundsson,
que parecia o Lovecraft usando um bigode falso.
Mas como explicar as outras mudanças da história?
E acreditem, são muitas (darei detalhes dessas diferenças mais adiante, esperem um pouco).

Uma teoria é que, como Bram Stoker teve de mudar muito do livro para que fosse publicado por Archibald Constable & Co., ele viu na tradução do livro uma oportunidade de lançar uma versão mais completa e sem censura de sua história. Entretanto, Stoker era notoriamente pudico (mesmo tendo morrido de sífilis), e pró-censura, e o teor erótico presente em Poderes das Trevas (sim, isso mesmo, esperem um pouco que dou mais detalhes) colocam essa teoria em cheque.

Por outro lado diversos pontos da trama de Makt Myrkranna que não estão em Dracula estão presentes nas anotações originais de Bram Stoker para a história. Personagens tem nomes de conhecidos do autor em sua vida pessoal, e existem referências a acontecimentos, como os Esquartejamentos do Rio Tâmisa (ocorridos um ano antes dos crimes de Jack o Estripador, e cobertos pela imprensa Londrina, mas totalmente desconhecidos na Islândia), que nem Ásmundsson, que nunca viajara para fora de seu país, nem o leitor Islandês da época tinham como conhecer. É possível que as mudanças na história não tenham sido feitas apenas pelo tradutor sem consentimento de Bram Stoker, afinal, ele próprio escreveu um novo prefácio para ela..

O que tivemos aqui foi provavelmente um processo de co-autoria. Uma versão nova de Dracula criada em conjunto a partir de uma versão anterior do livro.

Então, graças a curiosidade e o trabalho de tradução de Hans Corneel De Roos, uma edição em inglês de Makt Myrkranna foi compilada e lançada pela Overlook Press.
Powers of Darkness: The Lost Version of Dracula” de Bram Stoker & Valdimar Ásmundsson chegou nas livrarias em Janeiro de 2017, com um prefácio escrito por Dacre Stoker e diversas notas sobre as diferenças e processo de tradução, deixando o mundo literário mais do que surpreso, tanto por sua existência, quanto por ter permanecido desconhecido pelo resto do mundo por mais de cem anos.


Mas a história não terminou aí...


Poderes das Trevas:  Dracula Director's Cut Versão 1.0


Entra na história o pesquisador literário sueco Rickard Berghorn.

Ao ler sobre o lançamento de Makt Myrkranna, Berghorn se lembrou que a tradução sueca de Dracula tinha um nome similar com o mesmo significado, Mörkrets Makter, e ao buscar na Biblioteca Nacional Sueca, descobriu que a obra também havia sido serializada em jornais, nas publicações Dagen e Aftonbladets Halkfvecko-Upplaga, datando de 1899, um ano antes da serialização de Makt Myrkranna.
Götebrogs Aftonbladet, 25 de setembro de 1899, oferecendo uma reedição de Mökrets Makter

Agora vem a melhor parte: Mörkrets Makter, a versão Suéca de Poderes das Trevas, tem quase o dobro do tamanho de Dracula!

A versão é identica a Makt Myrkranna até o fim da primeira parte, com Harker fugindo do castelo. Na serialização em Aftonbladet, ela começa a apresentar a narrativa resumida a partir desse ponto, sem estar em estilo epistolar, embora Renfield ainda esteja presente, o que nos leva a conclusão que a versão Islandesa foi ainda mais resumida por Ásmundsson a partir da publicada em Aftonbladet (De fato, pesquisadores literários Islandeses suspeitavam há muito tempo que Makt Myrkranna não fosse um texto original escrito em Islandês, mas a tradução de uma versão escandinava anterior).

Mas na versão publicada o periódico Dagen a história cresce, muito. Ela tem até ilustrações (não muito boas, é verdade) e foi publicada mais uma vez, anos depois, em uma revista barata chamada Tip-Top, com a apresentação “Romance de Bram Stoker. Adaptação Sueca para Tip-Top por A-e”. A ligação com Bram Stoker, ao que parece, não era com Valdimar Ásmundsson, da tradução Islandesa, e sim com o misterioso A-e da versão Sueca, que até o momento, ninguém tem nenhum indício concreto de quem seria, mas que é, de fato, a figura que teria trabalhado com Bram Stoker (ou com seu consentimento) para a criação do livro.

O que é surpreendente é que diferente da versão serializada na Islândia, que era obscura fora do país e ninguém havia pensado em ler por completo (com exceção do prefácio) para ver se haviam diferenças, a versão Sueca não era desconhecida no mundo literário... e mesmo assim, ninguém também havia pensado em ler para ver se havia alguma diferença!

Pelo menos até lerem sobre a tradução de Makt Myrkranna.

"Ninguém previu isso. Nem meus colegas de pesquisa ou meu editor, ou minha amiga Simone Berni, da Itália, que é uma especialista nas primeiras traduções de Dracula [...] eu passei três anos tentando encontrar uma conexão entre Valdimar Ásmundsson e Bram Stoker. Um contato direto assim explicaria como elementos das notas de Bram para Dracula que nunca foram publicadas no livro de 1897 foram parar em Makt Myrkranna. Agora parece que devemos começar é a procurar por uma ligação entre Stoker e Harald Sohlman, o Editor-Chefe da Dagen e Aftonbladet."


"É um pouco irônico. Tanto esforço acadêmico e pesquisa foram aplicados em um texto Islandês que é apenas um pálido resumo de uma versão já resumida, baseada no texto original publicado no jornal Dagen perto da virada do século. Não teria sido muito difícil achar o texto sueco original, se tivessem feito consultas online nas Bibliotecas Nacionais Escandinavas e procurado em seus arquivos"

Uma pequena editora Suéca chamada Aleph Bokförlag publicou o texto integral de Mökrets Makter em Outubro de 2017.



Certo, eu falei isso tudo, dei uma mini-aula sobre publicações serializadas de Dracula, mas resta a questão, quais são essas mudanças tão drásticas que tornam Poderes das Trevas um livro diferente?

Se preparem que é aqui que o negócio fica doido.


Baladas em Carfax, Macacos-Vampiros e Jóias Hipnóticas



A primeira coisa que tenho de dizer é que Poderes das Trevas não enrola. Diferente das longas discussões morais, filosóficas, ou declarações de apreço que os personagens de Dracula tem, Poderes das Trevas tem a tendência de avançar rápido, como em uma história pulp, onde cada trecho empurra o enredo para frente.

É claro, isso é uma diferença de estilo. Mas e a história em si?

Bem, podemos ilustrar isso na estadia de Jonathan Harker no castelo de Dracula...ahem, digo, a estadia de Thomas Harker no castelo de Draculitz.

Sim, Poderes das Trevas muda certos nomes. Mina e Lucy, se tornam Wilma e Lucia, por exemplo.

Em toda a seção em que se passa no castelo, Dracula parece estar jogando um jogo de gato e rato com Harker, posando de cosmopolita, mencionando seu apreço pelas histórias de Arthur Conan Doyle, para em seguida chocar suas sensibilidades vitorianas com discussões abertas sobre assuntos sexuais, coleção de gravuras eróticas, e mencionando ter passado meses torturando a esposa e seu amante, em seus “dias de marido ciumento”




Ah, sim, o Conde é aparentemente casado com sua própria prima (ou tia, ou sobrinha... a palavra usada para as três é a mesma no idioma em que o livro foi escrito), além de ter uma filha. Segundo ele, todas as linhas sanguíneas de seu clã, cujos retratos adornam as paredes do castelo, são puras. Isso se dá, é claro, através das velhas práticas incestuosas da nobreza.
Aliás, Átila continua sendo aludido como um ancestral de Drácula, e ele e seus Hunos teriam ganhado poder se relacionando com demônios e bruxas na floresta. Além disso, sua linhagem teria membros secretos por todas as casas nobres mais importantes da Europa.

Mas deixe-me falar um pouco da figura da Condessa, esposa de Drácula.

Em Dracula existem as três vampiras que atormentam Harker durante sua estadia no castelo. Aqui, apesar de não ser a única mulher presente, pois o Conde também tem uma criada surda e muda (saída diretamente das anotações de Bram Stoker), é dado um destaque maior a principal das “noivas de Drácula”. Essa, por sua vez, é ninguém menos que a mesma figura loura mencionada em “O Convidado de Drácula”.


Em determinado ponto Drácula explica que essa sua parente em questão é mentalmente instável (Drácula, Rei dos Vampiros e do Gaslighting), e que as vezes pensa ser sua própria tataravó, inclusive mostrando um retrato que confirma a semelhança de ambas.

A Condessa, reclamando de sua imensa solidão, tenta seduzir Harker todas as noites em seu quarto, e ao contrário da luxúria de sangue clara das três vampiras em Dracula, em Poderes das Trevas seus métodos de atraí-lo e corrompê-lo se focam em outro tipo de luxúria. Isso fica claro até no tipo de prosa usada.

Vamos comparar um trecho específico de Dracula, com sua versão correspondente em Poderes das Trevas.

Em Dracula:
A mulher loura caiu de joelhos e se curvou sobre mim num êxtase de enternecimento. Havia uma deliberada volúpia nela que era tanto arrebatadora quanto repulsiva, e conforme arqueava seu pescoço, ela chegou a lamber os lábios feito um animal, até eu poder ver a umidade brilhando em seus lábios e língua escarlates enquanto passavam pelos dentes brancos e afiados.”

Em Poderes das Trevas:
E então, dois grandes clarões fulgurantes se seguiram, iluminando tudo com uma brilhante e elétrica luz. E neste brilho ela estava subitamente a minha frente -, muito perto --- estonteante – como uma chama branca, com o mesmo sorriso tentador e enigmático de quando eu vi pela primeira vez as chamas azuis de seus olhos, penetrando minha mente e fazendo que minha energia e força de vontade derretessem feito cera-de-abelha. Eu a vi assim por alguns segundos apenas, esguia, mas voluptuosa contra a luz baça do quarto – e então tudo ficou escuro [...]

Mais uma vez o silencioso brilho chamejante lampejou, fantasmagórico e aliegínea – me revelou seu rosto adorável perto do meu, se curvando sobre mim, seus olhos fixos nos meus; os lábios vermelhos semi-abertos, voluptuosos de desejo, a jóia sobre seu seio branco nu brilhava; eu vi como ela caiu de joelhos, perto de onde eu me deitava; no momento seguinte tudo era escuro novamente, e em um estado de torpor estonteante, eu senti como se estivesse afundando em um abismo […] – – senti seu hálito sobre meu rosto, morno e intoxicante – – senti um par de lábios entumescidos se pressionarem contra o meu pescoço em um longo beijo ardente que fez minha própria essência tremer com o êxtase de desejo e angústia – E em um transe descontrolado eu enlacei a bela aparição em meus braços – –”

Embora Harker (supostamente) se esforce para resistir aos avanços da Condessa, não há tantos sinais da repulsa como os que ele demonstra em Dracula. Ele chega a mencionar que ela igualmente o assusta e o atrai. E mesmo com o Conde sempre interrompendo esses encontros, Harker ainda é acometido por “febres” devido as “estranhas paixões” provocadas por sua visitante.
Ingrid Pitt em Countess Dracula, 1971

Harker eventualmente percebe que é um prisioneiro no castelo, e ao explorá-lo, ao invés de encontrar caixas de terra, o que ele encontra ao explorar essa versão mais labiríntica da morada de Dracula, é uma orgia satânica promovida pelo Conde em sua longa capa vermelha.
Uma Missa Negra em um templo decorado com chamas, com direito a narrativa lúrida descrevendo camponesas acorrentadas e de vestes rasgadas que são sacrificadas por um séquito de adoradores (e olha, não é a primeira nem a ultima combinação de nudez e sangue que rola no livro).

Ah, e esses adoradores de Drácula? Híbridos vampíricos animalescos, criaturas meio primatas meio humanas que habitam as cavernas cavadas sob o próprio castelo.
Ilustração da serialização da Dagen, 1899

Eu disse que as coisas iam ficar malucas.

E enquanto o Conde em Dracula deixa seu lar por ter exaurido a região do que precisa para sobreviver, partindo para Londres, o centro da civilização, para ter um novo campo de caça, em Poderes das Trevas suas ambições são maiores.

O objetivo de Drácula em Poderes das Trevas, é a conquista.
"O meu objetivo... é a conquista!"

 O Conde, que aqui tem o costume de mandar cartas para políticos e figuras europeias famosas (provavelmente usando mesóclise e citações em latim), todas financiadas por ele para dar cabo de suas conspirações de dominação dos vivos, a propagação do vampirismo, e a de seus rituais de magia negra e sacrifícios humanos.

Em suas conversas com Harker, o Conde, ostentando divisas militares nas vestes, chega a citar Darwinismo Social como justificativa de seu direito de nascença de esmagar as pessoas comuns sob suas botas, e que os vampiros são um novo patamar na evolução da humanidade. Em determinado ponto ele diz:

os mais fortes devem pravelecer e conquistar o mundo. Aqueles que são fracos foram criados apenas para satisfazer as necessidades dos mais poderosos. A pessoa que sabe como peceber sua força ganhará supremacia e terá tudo sob o seu comando – beleza, prudência, e conhecimento”

E enquanto em Dracula o Conde parte sozinho para a Inglaterra, se passando por humano apenas brevemente para adquirir propriedades, em Poderes das Trevas Dracula se torna parte da alta sociedade. Assumindo a identidade de “Barão Székely”, ele visita cordialmente Wilma (Mina) e Lucia (Lucy), seduzindo a última e lhe dando conselhos sobre seus dons mediúnicos latentes (!).

O futuro casamento de Lucy com Holmwood inclusive, fica a perigo, por conta da obsessão dela pelo misterioso Barão.

O Drácula de Poderes das Trevas é tão social que até mesmo dá grandes festas em Carfax, sua mansão (que aqui não é uma ruina, e sequer fica no mesmo endereço), para onde convida diplomatas estrangeiros ricos e poderosos, que planejam derrubar a democracia e instituir suas leis sanguinárias em uma 'nova ordem mundial'. 
 Além disso, o Conde traz todo um séquito de vampiros aristocratas decadentes com ele para ajudar em seus planos de engenharia social. Entre os novos personagens vampíricos que frequentam as festas de Carfax estão o Principe Koromesz, infame embaixador Austríaco em Londres, a Condessa Ida Varkony, irmã de Koromesz, o médium Margravine Caroma Rubiano, e Madame Saint Amand, uma donzela de muitos amantes.

Drácula, Party Guy.




Uma outra diferença em Poderes das Trevas é o destino de certos personagens.

O de Lucy, após ter seu sangue exaurido por Drácula e retornar do túmulo é incerto. Holmwood deixa seu caixão aberto com uma muda de roupas dentro, mas nada mais é mencionado sobre o assunto (já a mãe de Lucy e sua empregada tem um fim mais definitivo, sendo encontradas com a garganta aberta na mesma noite em que Lucy recebe suas derradeiras transfusões de sangue).
Isso não acontece no livro.

Por seu sanatório ser exatamente ao lado de Carfax, o pobre Dr. Seward acaba tratando os supostos distúrbios do sono da bela Condessa Ida Gonobitz-Vàrkony, que começa a hipnotizá-lo. Seward acaba retornando várias noites a Carfax, frequentando suas festas, e o misterioso e intimo “quarto vermelho” da mansão, e lentamente perdendo o controle de seu estado mental, culminando na perda total de sua sanidade e no incêndio do sanatório.

Mina é atacada por uma mulher fantasmagórica ao buscar Harker na Transilvânia, e ambos acabam convalescendo no mesmo convento. Após se casarem, Mina leva Harker, que não se lembrados acontecimentos no castelo, para se consultar com um famoso neurologista em Vienna, e determinar se um dia ele irá se recuperar do trauma.
"Meu teorria é que essa Drácula possui uma transtorno oral vindo de trrauma envolvendo seu mãe"

Quincy Morris sobrevive, mas é incriminado e vai a julgamento pelo assassinato do Conde.

Além disso temos inúmeros personagens novos, como o tio de Lucy, a irmã de Arthur Holmwood, que se casa com o assistente romeno do Príncipe Koromesz, os policiais Edward Tellet e Barrington Jones, provavelmente evoluções do Detetive Cotford, mencionado nas anotações originais, que investigam os crimes de Drácula (chegando até a incriminar Harker por engano), e certos personagens que sobrevivem em Dracula, morrem em Poderes das Trevas, e vice e versa.

O livro possui também um grande pessimismo de fim de século, particularmente no que se refere á política internacional e o estado de tensão dos países, como reflete o Dr. Seward ao ler o jornal em certo trecho:

A seção internacional do jornal anuncia sobre várias notícias estranhas – comportamento lunático e revoltas violentas organizadas por anti-Semitas, na Russa, Galicia e também no sul da França – lojas saqueadas, pessoas massacradas – insegurança de vida e propriedade – e as mais fantasiosas narrativas inventadas sobre “assassinatos rituais”, crianças sequestradas e outros crimes hediondos, todos atribuídos de forma criminosa aos pobres Judeus, enquanto jornais influentes instigam uma guerra de exterminação geral contra os “Israelitas”. É de se pensar que esse é o meio da Idade das Trevas! […] Agora, mas uma vez, parece que a chamada “Conspiração de Orleans” está sendo investigada – enquanto ao mesmo tempo os Republicanos livres na França celebram com exaltação os expoentes de escravidão e despotismo do Leste […] São tempos estranhos esses em que vivemos, isso é a verdade. – – – As vezes me parece que todas as fantasias insanas, todos ideias loucas, todo o mundo de inconstância e noções fragmentadas em que eu, como médico de sanatório, fui forçado a adentrar por anos ao cuidar de meus pobres pacientes, agora começam a se formar e serem praticadas no curso dos eventos mundiais”


Prevendo Tendências


 Outra coisa curiosa de Poderes das Trevas é que a derrota do Conde se dá na Inglaterra, com Van Helsing atravessando seu coração com uma adaga ainda em Carfax (que é destruída, tal qual o castelo, no final omitido de Dracula). A omissão da perseguição pelos Cárpatos e substituição por um final mais rápido e local é algo que seria feito repetidamente nas adaptações de Drácula no teatro e cinema. De fato, a peça teatral de 1924 que deu origem a adaptação cinematográfica com Bela Lugosi, seguia por um caminho muito parecido, com o Conde se passando por um aristocrata mais abertamente social, e sendo destruído em seu próprio refúgio em Londres. Isso levanta a dúvida de que versão exatamente foi usada por Hamilton Deane para a adaptação da obra.
Dorothy Peterson e Bela Lugosi na peça de Hamilton Deane, 1927

 Um outro elemento presente em diversos filmes (os da Hammer, principalmente, mas que já dava as caras nos da Universal), é um anel pertencente a Drácula com um papel importante. Em Poderes das Trevas, existem jóias com propriedades hipnóticas usadas pelos vampiros.

Em suas anotações originais, Stoker menciona Lucy achando um misterioso broche na praia de Whitby, vindo do naufrágio do Demeter, o navio que traz Drácula à Inglaterra. A joia, volta a aparecer quando Lucy é atacada no cemitério, durante um de seus episódios sonâmbulos. Em Poderes das Trevas ela é influenciada pelo broche de brilhantes ao encontrar os ciganos que servem Drácula. O mesmo tipo de joia é usada pela Condessa Vàrkony ao dominar Seward, e pela figura loura que seduz Harker no castelo. Em determinado ponto, Drácula dá a Harker um anel de rubi que possui o mesmo brilho sugestivo das demais jóias.
Os sugestivos e hipnóticos anéis de Drácula em House of Frankenstein, Dracula AD 1972, e Dracula's Daughter
  E é claro existe a vestimenta mais característica que Drácula usa em Poderes das Trevas, seus trajes rituais: uma longa capa vermelha.



"Denn Die Todten Reiten Schnell"



 A existência de Poderes das Trevas é um soluço de continuidade que geralmente não vemos acontecer na vida real.  É quase como ver duas espécies distintas que vem de um ancestral em comum. Ler Poderes das Trevas causa uma certa estranheza, e o resultado é similar ao efeito quando dormimos ao assistir um filme, e as falas do filme são encorporadas em nossos sonhos em contextos diferentes (no caso, você dormiu assistindo Dracula, mas o filme acabou e começou alguma outra história depois, envolvendo homens das cavernas, conspirações internacionais, proto-fascistas e bailes vitorianos).

 Por mais de um século Dracula tem sido adaptado e re-adaptado para diferentes mídias, em versões boas (como a do Francis Ford Coppola), em versões que tomam uma vida própria (Universal e Hammer Films), versões risíveis, medíocres e que provavelmente forma uma má ideia, ou uma ideia decente mal executada (Dracula 2000, Dracula Untold, a série do Dracula da NBC), gerou jogos (Castlevania), quadrinhos (Tomb of Dracula), animações (Hotel Transylvania) além de inúmeros spinoffs, pastiches, homenagens, e versões alternativas, como os livros The Dracula Tape, de Fred Saberhagen, que envolve o velho Conde dando a sua versão dos acontecimentos via suas memórias em um gravador (uma ano antes de Entrevista com o Vampiro), The Diares of the Family Dracul, de Janne Kalogridis, que são exatamente o que o título diz, Chidren of the Night, de Dan Simmons, que traz uma história na Romênia pós-comunismo envolvendo a linhagem de Drácula, e o meu favorito, a série Anno Dracula, de Kim Newman, que parte da premissa que os planos de Drácula na Inglaterra foram bem sucedidos, com ele se tornando príncipe-consorte, e introduzindo abertamente o vampirismo ao mundo, e todas as consequências disso em um mundo onde todos os vampiros da ficção co-existem (o meu livro favorito é o terceiro da série "Dracula Cha Cha Cha").

 E é claro, além de tudo isso, o livro em si nunca deixou de ser reeditado (estou de olho naquela edição da Darkside Books que é igual a edição original de capa amarela).


 E como "os mortos viajam céleres", não demorou para que decidissem adaptar a versão perdida de Drácula para outra mídia. O produtor Sigurjón Sighvatsson, da Scanbox, anunciou estar trabalhando com o premiado roteirista islandês Otto Geir Borg em uma série de TV baseada em Poderes das Trevas.

 Aparentemente, a série de 10 episódios intitulada "Dracula Now" vai se focar no lado político da história, trazendo os acontecimentos do livro para os dias atuais, e com Drácula sendo um manipulador tirânico megalomaníaco com planos de dominar a Europa.

 "'Dracula Now' vai ser uma alegoria do que está acontecendo hoje nos Estados Unidos, Reino Unido e França. Não será como um spinoff de Dracula porque não há necessidade disso. 'Dracula Now' vai explorar a ideia de Drácula como um ditador forjando um reino de sangue para controlar as pessoas no mundo atual."
 [Sigurjón Sighvatsson, para a Variety]


Além dessa, temos uma nova adaptação (do Drácula clássico dessa vez) sendo produzida pela BBC que será lançada em um futuro próximo.

Não vou falar da franquia Dark Universe porque essa já está morta-viva há um bom tempo, e suspeito que não vai conseguir se erguer do túmulo não.

Drácula, seja o Conde ou o livro, tem uma maneira de sempre retornar. Quer seja voltando inexplicavelmente do além-túmulo após ser decapitado, com uma gota de sangue pingando em um monte de cinzas em uma ruína ancestral, ou na descoberta de uma versão alternativa de si próprio. Talvez a capacidade de Drácula de se reinventar, algo essencial em um vampiro imortal, seja o que continua a manter sua relevância viva, ou morta-viva, por tanto tempo.

E com esse pensamento, eu fico por aqui. E a vocês eu digo como disse o próprio Conde:

"Vá á salvo, e deixe aqui algo da felicidade que trouxe consigo"





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